15/01/13

“HISTÓRIAS À VISTA” - 26

          26.ª “HISTÓRIA À VISTA”, da autoria do CMG FZ RES Leão Seabra, à época da narração 1.º Tenente, este artigo foi redigido originalmente para a publicação bimensal do Comando do Corpo de Fuzileiros «Revista FUZOS» de Março de 1994, entidade a quem agradeço a cedência da revista, nomeadamente ao Almirante Cortes Picciochi.
 
TI' JÚLIA
 
          "Não é possível escrever sobre a Ti' Júlia sem o fazer com emoção. Talvez, por isso, não seja importante aprofundar, aqui, a história da vida desta mulher, mas tão somente falar dela numa simples homenagem a uma mulher simples".
          Ti' Júlia (carinhosamente assim tratada pelos amigos), é uma mulher simples e de origem simples, apesar do seu passado complicado, pouco bafejado pelos ventos da felicidade.
          Nasceu pobre, casou pobre e muito nova. Muito cedo ficou de "barriga à boca" (grávida) o que constituía um peso suplementar diário, aos muitos quilómetros que percorria a pé, de casa para o trabalho. A juntar a esta vida dura, suportava ainda um marido que tinha o péssimo feitio de lhe "assentar a mão" por tudo e por nada. Mas tudo isso já lá vai e também ele lá foi há muito tempo.
          A Ti' Júlia não gosta de recordar este seu passado... O seu passado começou há 24 anos, altura em que começou a trabalhar na Escola de Fuzileiros, em Vale de Zebro.
          Todos os Oficiais da Marinha de Guerra Portuguesa que passaram por esta Escola tiveram, de uma forma ou de outra, o privilégio de conhecer esta interessante mulher dotada para o asseio, limpeza, para a perfeição, apresentação e aprumo.
          É muito frequente no dia-a-dia, ouvir-se nos corredores da Messe de Oficiais, alguém chamar, em voz alta pelo seu nome:
- “Ti´ Júlia!”.
- “Diz môr”. (resposta carinhosa ao tratamento carinhoso).
- “Não tem por aí umas platinas e um cordão vermelho?”.
- “Sabe, levei a farda para lavar e esqueci-me...”.
          E lá vai a Ti' Júlia ao seu compartimento de trabalho onde, não havendo propriamente o stock da ex. Fábrica Nacional da Cordoaria, sempre se pode encontrar o necessário para safar uma "enrascada": Boinas, bonés, camisas (de todos os padrões), calças, botões de punho, galões, etc... etc... e muitos etc's. A seguir vem a cobrança por este empréstimo:
- “Vocês andam mesmo na lua! São as namoradas...”.
(ou então, referindo-se aos casados)
- “Coitadinhas das vossas mulheres, o que elas passam com estas cabeças de vento... pois é, vão para casa... só querem é borga e depois esquecem-se...”.
          São estes os "mimos" que a Ti' Júlia dá, sem excepções, a quem a ela recorre... porque ela é assim: meiga, querida por todos, bem-disposta.
          Às vezes anda triste e, nos últimos tempos, de forma bem notória. É que se aproxima, a passos largos, o dia em que terá de dizer adeus aos Fuzileiros... definitivamente! É a lei da vida... É a reforma!
          A Ti' Júlia tem medo desse dia: Não sabe como viver sem os seus "filhos adoptivos", sem esta casa, sem os seus únicos amigos. Tem medo... nem quer pensar... Não vai ser fácil para ninguém!
          A Ti' Júlia, tem outra particularidade digna de realce: "Perfilhar" todos os Cadetes incorporados na Escola de Fuzileiros.
          Para estes ela é a "Mãe" que todos gostam de ter nos momentos mais complicados do curso, em que a verdadeira Mãe não pode estar presente.
          Lembro-me, quando há 16 anos, ingressei nesta Escola e iniciei o CFORN. Tudo e todos me pareciam hostis excepto esta mulher que, logo no primeiro dia apareceu no nosso alojamento para nos ajudar, educar..., perfilhar... veio ser Mãe! Não falou muito, mas disse tudo:
- “Olha pr'a eles coitadinhos! Tão branquinhos, tão novinhos... parecem uns copinhos de leite!”.
- “Isto dá muito trabalho, isto aqui é duro e os instrutores são brutos! Agora não se armem em mariquinhas?!”.
          É por esta razão e pelo desempenho ao longo dos cursos, que a Ti' Júlia bem merece esta carinhosa alcunha: «A Mãe dos Cadetes».
          A Ti' Júlia viu passar por ela todos os Oficiais do Corpo de Fuzileiros e, de todos, guarda saudades. Quando regressam a esta casa (mesmo que se tenham passado muitos anos), é vê-la "mirar" o Oficial de alto a baixo e arranjar uma piada engraçada que, normalmente, se refere ao passado:
- “Olha pr'a ele como está crescido... parece um homenzinho!!”.
          Depois, vem o abraço e o beijo familiar que refletem uma amizade profunda e duradoira. Chegou a hora desta homenagem singela mas justa que todos nós, os que conhecem a Ti' Júlia, querem e sentem obrigação de lhe fazer pela distinção, orgulho e honra de terem sido, algumas vezes "enxovalhados" por esta mulher que estimamos e adoramos:
A nossa Ti' Júlia, a Ti' Júlia da Escola de Fuzileiros.

09/01/13

LEITURAS À VISTA - 02

          Nesta 2.ª “LEITURA À VISTA”, recomendo o livro: "Os Submarinos na Marinha Portuguesa", 3.ª edição da Editora Oasis e Editora Náutica Nacional, Ldª, redigido por Maurício de Oliveira.






































          «Promovido pela ENN - Editora Náutica Nacional, Lda. e a Editora Oásis, Ldª, esta 2.ª reedição da obra de Maurício de Oliveira, “Os Submarinos na Marinha Portuguesa”, por ocasião da recepção dos novos submarinos que vão constituir a V Esquadrilha.
          Este livro foi apresentado em sessão pública no Clube Militar Naval, ao Saldanha, em Lisboa, pelo V/Alm Conde Baguinho, submarinista e ex-Vice-CEMA, no dia 07 de Abril de 2011.
          Trata-se de um clássico, de um livro publicado em 1972, onde é relatada a história da nossa arma submarina a par de episódios da navegação e da guerra submarina em geral e onde nos é dado o seu enquadramento histórico na vida nacional. É um texto muito interessante, que se lê com rapidez e agrado, ilustrado com numerosas fotografias, algumas muito curiosas, e onde estão repositadas tantas vivências, que já são História e que em nossa opinião merecem ser de novo publicadas e publicitadas, sobretudo num tempo em que tanto se fala sobre a oportunidade da aquisição destas unidades.
          Em 1988 esta obra foi objecto de uma 2.ª edição, revista e aumentada com um capítulo relativo às décadas de setenta e oitenta do século passado, redigido pelos então Cten. Conde Baguinho e 1.º Ten. Borges Gonçalves, e com um prefácio pelo então Editor, Cte. Lobo Fialho.
          Nesta obra agora publicada, o C/Alm Álvaro Rodrigues Gaspar, prestigiado submarinista, completou o texto da 2.ª edição com um capítulo adicional, abordando o período do fim dos anos oitenta do século XX até ao presente, quando tem início a actividade das novas unidades, os NRP’s TRIDENTE e ARPÃO já ambas ostentando a bandeira Portuguesa. Apresentam-se assim, neste livro, cem anos de história ininterrupta dos nossos submarinos, apresentados no âmbito da Marinha de que fazem parte integrante. Recordemos que o ESPADARTE foi encomendado pelo Ministro João de Azevedo Coutinho, em Junho de 1910, ainda na vigência da Monarquia.
          A maioria dos nossos leitores são cidadãos comuns, que se interessam pelo Mar e pelas tradições marítimas dos Portugueses, mas que, naturalmente, não têm um conhecimento técnico destas matérias; daí a forma ligeira e aberta, não iniciada, que a redacção desta obra tem.
          A ENN e a Oásis gostariam que este livro fosse considerado também uma homenagem a todos os Submarinistas Portugueses, cujo profissionalismo, competência e espírito de sacrificio são bem conhecidos, e estamos certos que nisto seríamos acompanhados, quer pelo Cte. Lobo Fialho, o editor da 2.ª edição, quer pelo próprio autor do texto inicial, o Jornalista Maurício de Oliveira. Aos actuais submarinistas, da nova geração que guarnece as unidades da V Esquadrilha, votos sinceros de que sempre encontrem mares calmos, ventos bonançosos e águas safas!
          Esta obra, de 326 páginas, com muitas fotografias, muitas delas já a cores, de que foram impressos 600 exemplares, estará à venda no circuito das livrarias por 24€. Poderá também ser adquirido na firma J. Garraio, ao Cais do Sodré, em Lisboa, solicitada directamente à Editora Oásis (213522083 / http://www.diel.pt/) ou à ENN (214001292 / revistamarinha@netcabo.pt) , com o preço de 20€, para os assinantes da Revista de Marinha 18€, a que acrescem 2,10€, por unidade, de portes de correio. Existe ainda uma pequena edição de luxo, de apenas algumas dezenas de exemplares, com capa cartonada, com um custo unitário de 28€».

03/01/13

25.º HISTÓRIAS À VISTA PUBLICADAS!


          Foi publicada a 25.ª "HISTÓRIA À VISTA" no BLOGUE BARCO À VISTA, cumpre-me agradecer a todos que contribuíram com as suas memórias, para atingir este número nesta rubrica.

02/01/13

“HISTÓRIAS À VISTA” - 25

          25.ª “HISTÓRIA À VISTA”, da autoria do 1.º Comandante do Navio de Apoio “NRP São Miguel” - CMG REF Oliveira e Costa (1985-1988), versando sobre o seu «Bem-amado» NRP "São Miguel".

MEMÓRIA N.º 8: Se dúvidas houvesse…

          A 14JUL86 pelas 2130 atracávamos na Doca da Marinha terminando assim a nossa 13.ª saída. Cumpríramos o nosso primeiro lançamento ao mar de munições sentenciadas, pertencentes à Marinha e ao Exército. Missão temerária, única e irrepetível, face às condições em que se realizou, digna dos nossos maiores e merecedora de estudo, apreciação e registo. 
          Foi uma missão que assentou no espírito determinado e aventureiro, bem português, desenrascado e de pronto improviso onde sobressaiu a tenacidade e o entusiasmo de um reduzido número de homens que mostraram, a muitos outros, que eram merecedores do respeito e de muita consideração. Não é falsa modéstia! Não, não havia quaisquer dúvidas. Foi feito e bem feito! 
          Era esse o sentimento de todos quando regressamos, naquele fim de dia, à Doca da Marinha. Não convinha publicidade sobre o tema nem sobre a missão. Logo disso fomos informados quando da primeira reunião no Comando Naval do Continente (CNC) e, depois da chegada, de que deveríamos ser cuidadosos nas referências à missão executada. Ainda estávamos em preparativos para a nossa primeira “Viagem Logística à Madeira”, em finais de MAI86, quando nos foi dado conhecimento de que o NRP “São Miguel” fora designado para efectuar o lançamento ao mar de material explosivo obsoleto num total de 700 toneladas sendo 100 da Marinha e 600 do Exército. 
          Na missão embarcariam, para auxiliar na faina do lançamento ao mar, 12 soldados. Embarcaria igualmente, um Aspirante, como Oficial de ligação. Os problemas de habitabilidade existentes ficaram acrescidos! Nessa altura recebemos uma relação descritiva do material obsoleto a embarcar e pertencente à Marinha. Nessa Lista constava a informação de que 12 toneladas eram de material diverso e guardadas em 13 Paletes, informação que, de imediato, foi contestada pelo Comando. Mais tarde as Armas Navais corrigiram-na entregando uma Relação Completa e pormenorizada de todo o material a embarcar. 
          O Oficial Imediato, especializado em Artilharia, preocupava-se com os diferentes tipos de munições, previstas embarcar, não só pela futura localização das mesmas a bordo como da perigosidade que podiam representar a fim de minimizar riscos durante a estiva e transporte. O embarque, desse material sentenciado, seria no Cais do Portinho da Costa (CPC). A especificidade dessa tarefa fez-nos reforçar, junto do CNC, a premente necessidade das reparações, anteriormente solicitadas, e consideradas inadiáveis para o cumprimento da missão. 
          Encontrando-se o navio no Funchal, na primeira “Missão Logística à Madeira”, fizeram-se reuniões, no CNC, onde se tomaram diversas decisões algumas delas, na opinião do Comando do navio, não consentâneas com o tipo de operação da estiva e transporte de munições com posterior lançamento ao mar, navegando, num navio mercante, com a agravante de serem munições obsoletas e sentenciadas, onde se esperava que a maioria delas estivesse fora das embalagens de origem e já manuseadas de forma desconhecida. 
          Com a experiência por nós já adquirida lamento ter de reconhecer que era inata a dificuldade, por parte dos Oficiais da Marinha de Guerra, para não falar dos representantes do Exército, da realidade da condução de um navio mercante. Eram lotes inteiros sentenciados porque pelo menos 10% dos tiros efectuados tinham falhado, o que de imediato condenava todo o lote, podendo as restantes estar boas! E as obsoletas talvez grupadas de forma avulsa e encaixotadas por “tamanhos”! 
          Toda a presunção, cuidado e atenção eram absolutamente necessários. A bordo todos tínhamos a mesma responsabilidade e o Imediato por diversas vezes, em reuniões, explicou a todo o pessoal interessado na missão da perigosidade envolvida. Os contactos com o CNC e com o Quartel de Beirolas desde o regresso da Madeira, a 28JUN, eram diários. A 04JUL86, sexta-feira, atracávamos no CPC e desembarcámos a carga, trazida do Funchal, começando logo a preparar o navio para efectuar o carregamento do material militar que, sabíamos, ser da Marinha e do Exército. 
          Só a 7 se iniciaria o embarque. Dias antes em reunião no CNC foi apresentada um “draft” de Directiva da RML tendo sido na altura, ouvido o Comando do “São Miguel”, sugerido o seu reajustamento. Pormenores por nós considerados mandatórios, na condução desta missão, foram invocados de forma exaustiva bem como do material de que o navio não dispunha e se considerava necessário. 
          A solicitação do CNC a segurança das instalações do CPC passou a ser efectuada pelo Departamento Marítimo do Centro, Força de Fuzileiros do Continente e Polícia do Exército. A Directiva 10/86 da RML, reformulada, relativa ao “Lançamento ao mar de munições sentenciadas” é recebida a bordo a 05JUL. A chegada do material do Exército, para o embarque, foi atrasado devido a problemas com a elaboração da imprescindível Lista quantitativa e qualitativa das Munições. O Oficial Imediato esclareceu não só o Comando como todos os elementos da guarnição, sobre o que poderíamos encontrar e esperar numa missão deste tipo. 
          Assim o Comando não abriu mão e o material só embarcaria após apresentação da Lista Descritiva seguindo-se, de acordo com ela, o embarque, arrumação e fixação do mesmo. As paletes da Marinha teriam de ficar para o fim por serem mais baixas, com menos de um metro de altura, contra as do Exército que apresentavam várias formas e tamanhos … uma “salsada”! O navio continuava com problemas na válvula de “By pass” tendo-se conseguido a sua substituição antes da saída para esta missão. 
          Foram igualmente parcialmente beneficiados os guinchos. Era mais uma irresponsabilidade sair para o mar sem o “By pass” em condições. O navio podia navegar com Marine Diesel ou com Nafta. A Nafta o “São Miguel” fazia 14,5 nós de velocidade máxima e 12 de cruzeiro, em navegação corrida e sem alterações sensíveis de velocidade. Com Marine Diesel podíamos alterar a velocidade, e fazer manobras diversas atingindo uma velocidade máxima de 12 nós e de cruzeiro 11. Quando de regresso a Lisboa normalmente dava 12,5 nós. Uma deferência da “máquina” para toda a guarnição! 
          Durante a madrugada do dia 7JUL chegaram os primeiros contentores, com material do Exército, em viaturas Unimog que estacionaram na berma da estrada de acesso ao CPC, junto à barreira da entrada. Enquanto aguardavam a sua vez para descarregarem, Auto-tanques do Exército regavam-nos regularmente, do nascer ao pôr-do-sol, com a finalidade de evitar qualquer castigo térmico! Só visto! Contado só com muito respeito e consideração se aceita como verdadeiro este relato! 
          Mais tarde, nos porões, essa água escorria dos contentores não se sabendo se era só água ou já ácido proveniente da exsudação das munições, tal o péssimo estado que a maioria do material aparentava! Nos pavimentos dos porões ia surgindo uma camada fina de lama com um cheiro característico! Uma vergonha e um perigo! Nos dias de embarque as munições chegavam em comboio rodo, que atravessava a Ponte sobre o Tejo entre as duas e as 4 da manhã, com escolta e trânsito condicionado quando da sua passagem! 
          Durante o carregamento só estavam duas viaturas junto ao navio, cada uma defronte do porão de embarque respectivo. Os paus manuseados por pessoal do navio, sob o olhar atento do Mestre e dos Oficiais neles destacados, içavam a carga das viaturas e depositavam-na na coberta ou no porão conforme o planeamento elaborado pelo navio (um importante trabalho do Oficial Imediato) em função do tipo e constituição da munição a embarcar. 
          As lingadas que suportavam os contentores eram depois suspensas através de um Gato de Escape e levados para o lugar que lhes fora destinado. Esta manobra, no interior do navio, era feita por aproximações já que não dispúnhamos de monta-cargas! O pessoal em serviço no porão tinha de ter “olho vivo e pé ligeiro” para não correr o risco de ser entalado ou pisado! Em cima o pessoal que operava os paus de carga não podia ter qualquer distracção executando, sem hesitações, as manobras ordenadas. 
          A perigosidade da carga manuseada não permitia erros! Num porão trabalhava um Gato de Escape. No outro os paus trabalhavam com um Porta Paletes. Durante todo o carregamento o trabalho no cais e no interior dos porões era efectuado por pessoal da guarnição. O material conforme era colocado nos locais definitivos era logo peado. Com apreensão verificámos que a lista entregue, pelo Exército, ao CNC não correspondia integralmente ao material enviado para embarque. 
          Já com dois dias de carga recebemos, depois de grande insistência, uma nova Lista Descritiva do material substituindo a inicialmente entregue que, por lapso, como justificaram, fora trocada por uma do ano anterior! Já levávamos dois dias de embarque e cerca de 700 toneladas estavam carregadas, arrumadas e peadas… Mais tarde ficámos a saber, pelo Oficial de ligação, que a primeira lista fora simplesmente entregue para desenrascar a situação criada pela pressão do navio que exigia uma relação exaustiva do material para, só depois, iniciar o carregamento! Inépcia, comodismo e ignorância… 
          Entretanto a rega dos contentores, a aguardar embarque, manteve-se ao longo de toda a operação de carregamento e os derrames iam surgindo um pouco por todos os contentores. E o navio sem esgoto de porões! A bomba avariada não chegou a ser reparada, apesar das diligências feitas pelo navio, e assim se manteve ao longo de toda a Missão! Segurança, cuidado e atenção era a exaustiva lengalenga do Oficial Imediato, em constante movimento pelo navio e pelo cais, observando e verificando os trabalhos e a correcção de procedimentos. 
          Quando vislumbrava qualquer falta de atenção ou de cuidado o “prevaricador” era logo ali avisado bem como quem estava junto dele. Foi assim ao longo de todo a estiva. O movimento do pessoal a entrar e sair dos porões, o movimento dos paus de carga, a pancada das paletes ou o disparo do gato de escape soltando as lingadas permitiam apreciar um bailado esquisito com figurantes ora estáticos ora rápidos e exuberantes, vestidos de marinheiros, num conjunto harmonioso! Todos tínhamos interiorizado a responsabilidade das nossas funções. Todos dependíamos uns dos outros. 
          Nesse dia 9JUL a meio da manhã, uma palete escorregou pelas alças e caiu no cais ficando meia desmanchada… Presenciei a ocorrência e lembrei-me do que se passou com o cavalo que levámos, na viagem anterior, para o Funchal. O equídeo ia num contentor de madeira feito especialmente para ele. A tampa posterior vertical, fazendo de porta, armava sobre forte gonzo e era trancada com fortes cadeados. Na parte anterior dispunha de uma janela, defronte da cabeça do animal, que durante o dia ia sempre aberta. Um soldado embarcara para tratar do animal e… foi nomeado um marinheiro para tomar conta “dos dois”! 
          Quando do desembarque a grua de terra pegou no contentor e quando ia já à vertical da borda do navio a estrutura deu de si e ficou de tal forma desconchavada que se via perfeitamente o animal lá dentro. Momentos difíceis para o animal, para o seu tratador, para o Capitão cavaleiro, que de braço engessado, aguardava no cais com ansiedade a sua montada, e do pessoal do navio que, impotentes, assistiam à manobra. 
          O experiente operador da grua reiniciou a descarga, lentamente, conseguindo pôr o conjunto, no cais, ainda “inteiro”. A estrutura aparentemente muito resistente fora construída para estar no chão e não para andar no mar ou em fainas de içar e arriar! De forma semelhante a maioria dos contentores foi construída sobre uma palete de madeira, onde colocavam diversas caixas de munições. Algumas vezes foram ajuntadas caixas vazias para compor o “caixote” (!). Uma vez tapados eram então “fechados” com tábuas pregadas singelamente nos quatro lados e no topo, tentando “imitar” um cubo, construído para ficar no chão e não para serem suspensos por gruas ou paus de carga, onde movimentos bruscos estão sempre presentes por maior cuidado e atenção que os operadores tenham, nem tão pouco ficarem estivados num navio a navegar com balanços e pancadas desencontradas. 
          Eram aligeirados e alguns vinham cintados singelamente. Algumas das munições neles contidas estavam ainda nas suas embalagens originais mas a maioria tinha sido manuseada e apresentavam-se agora envolvidas em cartão, lona, papel de alcatrão e outros resguardos inimagináveis! A quem ia vivendo estes momentos um sentimento de impotência ia-se sedimentando… Foi no meio deste frenesim que o Mestre do navio surgiu para dizer que um caixote se “desenfiara” da lingada e caíra no cais tendo uma munição saído para fora do contentor destruído. Pela indicação inscrita, no contentor, tratava-se de munições inertes mas verificou-se ser uma munição de 7,5 cm escorvada e espoletada! 
          Mandei interromper a estiva, para “acalmar”, e solicitei a presença, do Oficial técnico de explosivos, do Quartel de Beirolas, com a maior brevidade. O mesmo, aliás, deveria estar presente durante toda a faina do embarque mas … O almoço foi coelho mas eu comi um bife… Depois do almoço e de vários telefonemas “superiores” apareceu o responsável pelo lote embarcado um Oficial da GNR! Viemos então a saber que havia material da GNR incluído no Lote do Exército e, por intermédio do Aspirante embarcado, soubemos também que havia munições da PSP, GF, INDEP, e sei lá de quem mais! 
          Tudo “fora” enfiado no mesmo saco! Afinal eram todos nossos amigos! Levado junto da munição caída e do contentor, já sem jeito com a sua carga desordenada e desalinhada num desleixo grotesco, e de onde tinham “saído” mais de 15 kg de areia. Limitou-se a dizer não existir qualquer perigo, sendo somente necessário refazer a caixa, pois eram granadas inertes de 75, há muito sentenciadas, dos Carros de Combate. A areia caída era de facto areia das obras que estavam em curso no local onde o contentor estava arrumado! 
          O Oficial Imediato talvez cansado de tanto falar sobre segurança, e cuidados a ter no manuseamento da carga, perante tanta falta de ponderação limitou-se a dizer que achava curioso estar a munição escorvada e espoletada! Não havia diálogo possível… A DIVLOG, do CNC, estava permanentemente informada, via telefone, sobre o desenvolvimento da actividade no “São Miguel”. Pouco depois chegava o Director do Depósito de Munições NATO de Lisboa, talvez alertado por algum telefonema. Incrédulo perante o inesperado quadro contactou com o Estado-Maior da Armada (EMA) e o CNC para abortarem a missão. 
          Fruto dessa intervenção foi requisitado um rebocador que ficou com cabos passados ao “São Miguel” e máquinas prontas para rebocar o navio para o mar em caso de necessidade! De nada serviria mas que foi bonito foi… Também por várias vezes recebemos a visita amiga do Director do Laboratório de Explosivos. No final das operações de carga, a 10JUL, sobravam 25 paletes de espoletas e de outro material que, na altura, o responsável do Exército já não sabia de que se tratava! Qual era o problema? 
          Tínhamos lutado para que as munições contendo fósforo fossem colocadas no convés mas afinal estavam peadas no fundo dos porões pois foram das primeiras a embarcar sob informação viciada na primeira Lista entregue ao navio! Na realidade não sabíamos, de forma correcta, o que ia nos porões salvo o material da Marinha identificado desde a primeira reunião. Só então, terminada a estiva, metemos água doce e lastrámos o navio. 
          Levávamos só um Gato de Escape em condições! Os outros, também enviados pelo CNC, apresentavam dimensões reduzidas para o serviço pretendido. O navio continuava sem capacidade de esgoto dos porões. Continuávamos sem lanternas de mão e, as existentes, eram particulares! Embarcaram do Exército, de 600 toneladas previstas, 866 toneladas. Da Marinha, como inicialmente indicado, embarcaram 100 toneladas. Demos volta à estiva antes do jantar. Jantámos e largámos com vento fresco de NE. O vento mantinha o navio teimosamente atracado e apesar de a maré estar de enchente não conseguia abrir a proa. 
          Tínhamos de sair. Chamei à Ponte o Oficial da faina da tolda e falei sobre a manobra que iria executar. Não havia segunda oportunidade. Chamei o Engenheiro e disse-lhe que a máquina não podia “ajoelhar” durante a faina da largada! Falei com o Imediato para se desdobrar pelas fainas! Não era preciso mas assim eu ficava melhor… Depois. Depois amarração ao singelo, 10 graus de leme a EB, reforço de balões à Popa, passar um través pelo seio, aguentar a regeira de ré. À proa mete tudo dentro. O Oficial Imediato desdobrava-se pelas fainas. O navio tinha passados o través e a regeira de ré. Na proa cabos prontos para passar a terra. 
          Na largada não havia pessoal no cais. Como de costume! Somente a minha mulher e o meu sogro. Máquina a ré devagar para esticar a regeira, folgar a pedido o través e máquina a ré meia. 15.º leme a EB. Atenção aos balões, o navio começou a fazer cabeça na quina do cais com a regeira, de grande bitola, bem tesada dava volta no guincho de ré bem socada na mão e pronto para arriar a pedido à medida que ela for tesando, não fosse a mesma partir. Era uma operação delicada. Os esticões da regeira eram sentidos e ouvidos na Ponte! 
          Preocupado corria à asa da Ponte para tentar perceber o estado da regeira. Fiquei “descansado” quando vi o mestre controlando o cabo que rangia sob a pressão a que estava a ser sujeito! e o navio abriu um mínimo mas que entendi ser a oportunidade para tentar sair. Máquina AV toda, mantém o leme, atenção aos balões, preparar para largar o través, aguenta a regeira, a popa estava em cima das pedras, e o navio começou a avançar. Ronda a regeira. A popa começou a querer “raspar” o cais. 
          O vento mantinha-se. 10.º de leme a BB. A descarga fez afastar a popa, e a água de enchente ajudou a aumentar a “almofada de água ao cais”. Leme a meio. Mete dentro a regeira. Atenção aos balões. Logo que a popa “despegou” do cais meti 5.º de Leme a EB, mais 5.º. O navio estava a navegar e manobrei-o até ter uma proa franca à Barra. Tudo dentro! Vi o Imediato a percorrer as fainas. Sr. Mestre Volta à Faina. 
          Primeiro o Imediato que “simplesmente” me cumprimentou, depois agradeci ao Engenheiro a forma como a “máquina“ se comportou e ao Oficial da Faina da Tolda pelo cuidado na condução da manobra. Como previsto saíramos ao fim do dia 10JUL. Já sozinho na Ponte e a sair pela Barra Sul o Mestre, nado e criado em Caminha no seio de pescadores e de embarcações de pesca, veio até mim para me dizer quanto orgulho tinha em servir no navio e comigo. Fazendo a continência saiu da asa da Ponte onde me encontrava. 
          Depois da pressão que passara ao longo de todo o carregamento e da Faina de largada tão exigente foi um momento de solidão de comovida serenidade. Sentia uma paz sem fim! Foi uma das melhores sensações da minha vida de Marinha… O meu lado Marinheiro estava de alma cheia. Estávamos como de costume sozinhos e por nossa conta! Em reunião no CNC foi dito ao Comando de uma Corveta para, durante o período do lançamento das munições ao mar, permanecer ao alcance visual do NAMIGUEL para apoio moral da guarnição e eventual apoio físico. 
          Nesse primeiro dia de navegação, às 2000, pela fonia, o Comandante da Corveta inquiria se tudo estava a correr bem e dava a conhecer que, na altura, se encontrava atracado em Leixões. “No comments!”. Estávamos sozinhos mais uma vez naquele mar imenso. Éramos só nós e o Manto de Nossa Senhora de Fátima que nos cobria e protegia pois, dos homens, ninguém queria saber de nós. No dia 11JUL alcançávamos a área escolhida para efectuar o lançamento e começamos a descarrega. 
          O primeiro caixote, com espoletas e que seguia no convés, foi arriado pelo Ten. Pico até ao lume de água, às 0645, largando-o de seguida no mar. Era moroso demais… Abriu-se o segundo caixote e passaram a atirar para longe uma a uma. Era perigoso e continuava a ser muito moroso. Passaram então a deitar simplesmente os caixotes, um a um, ao mar. A velocidade foi reduzida pois havia o perigo de serem puxadas ao hélice. O primeiro caixote não se afundou logo pelo que o seguinte foi verificado e dele retirado o que poderia entravar o seu normal afundamento. Papel, cartão, papel alcatroado, desperdício e papel em tiras… uma confusão! 
          Constatado a existência de caixas vazias para “compor” as paletes! Foi notória a falta de escolta quer por razões de segurança quer de apoio à missão. Verificada a presença, na área de lançamento, de arrastões japoneses no dia 12 e de um Navio-fábrica, russo, no dia 13 não identificados. O Comando do Quartel de Beirolas oferece neste dia ao navio, através do Aspirante, dois morteiros de 81mm, para a Câmara de Oficiais. A navegar as operações da estiva e a ventilação, os geradores vão ao máximo da carga o que nos aumentou as preocupações. Sem energia seriamos uma bomba flutuante… 
          No dia 12JUL continuamos a descarregar e a 1.ª palete “saiu” às 0700. Foram sentidos dois rebentamentos submarinos. Uma sensação nova vinda de baixo para cima, do pavimento, reflectindo-se nos joelhos! Ficámos convencidos que tinham sido os chamados “torpedos bengalórios” usados para destruir colunas das pontes e muito sensíveis que, com a pressão, deflagraram. No dia 13JUL a primeira palete ao mar foi às 0900. O tempo estava péssimo e só o mar de popa nos deixava trabalhar. Também neste dia foi sentido um forte rebentamento submarino. Às 2015 descarregou-se a última palete para o mar. Tínhamos conseguido cumprir a missão mantendo-se a bordo um óptimo ambiente de trabalho. Foi obra descarregar tanta carga sem treino específico. 
          No regresso, vazios e com tempo do Norte, a viagem foi muito cansativa. Durante a noite o tempo melhorou permitindo aumentar as rotações e deixando prever chegarmos ao fim do dia, 14JUL. Na aproximação à Doca da Marinha nova avaria “no ar” da máquina o que nos obrigou a fundear e pedir rebocadores atracando depois. Após a Volta à Faina o pessoal do Exército, embarcado em 9JUL, desembarcou. 
          Tínhamos conseguido lançar ao mar uma média de 38 paletes por hora. Faina às 0800 e Volta às 1800 com o almoço das 1200 às 1400. O lançamento ao mar foi feito, navegando para Sul, muito devagar a vante (80 RPM) a 8’ e com o mau tempo. No 3.º dia conseguimos fazer 9.5’. O lançamento fora sempre feito com mar na alheta para diminuir os balanços que tornavam “impossível” a vida a quem trabalhava nos porões. Durante a noite navegávamos para Norte. Perdemos muito tempo a “desarranjar” as paletes de forma a retirar o mais possível das protecções das munições que não as deixavam afundar deixando-as a flutuar durante algum tempo. 
          Foi reconhecida a falta de uma máquina de cintar para reforçar os contentores, cintando-os dobrados ao alto e de lado evitando-se assim que as caixas abrissem quando lançadas. As tábuas deviam estar mais afastadas para permitirem uma entrada franca de água para o seu interior. Notada a falta de luvas de cabedal pois as de amianto que nos foram fornecidas não davam para tudo. Não podíamos furar os caixotes pois desconhecíamos o seu conteúdo tornando o seu manuseamento mais demorado. As caixas de granadas de mão eram estanques em folha-de-flandres e as granadas ainda vinham envoltas em papel alcatroado. 
          Tivemos de abrir caixa por caixa e desembrulhar granada por granada. É verdade não é ficção! Tínhamos terminado a nossa 13.ª saída. Na despedida o Oficial do Exército ao cumprimentar o Oficial Imediato dizia:
- “… correu bem e tivemos muita sorte!”.
          Muito da sorte desta missão se ficou a dever ao intenso trabalho do Imediato, do Engenheiro bem como do Mestre, Oficiais e todos os que ali trabalharam de alma e coração. Com o seu sorriso de circunstância o Imediato respondeu-lhe:
- “ É verdade camarada, esta sorte, deu-nos um trabalhão do caraças!”.
          Toda a Missão estava ali sintetizada - um trabalhão do caraças. Todos tinham cumprido zelosamente com as tarefas que lhes estavam cometidas e de tal forma que o Cartão do Detalhe foi, nesta Missão, um mero pró-forma… Havíamos de fazer um segundo lançamento ao mar e, igualmente, com sucesso! Estou convencido que crescemos todos, mais um pouco, nesta tão trabalhosa, perigosa, sofrida e heroica viagem. 
          Talvez em OUT94, quando da explosão do “São Miguel” carregado com munições obsoletas e sentenciadas, antecedendo o seu triste afundamento propositado, alguém se tenha lembrado de nós, dos trabalhos por que passámos e do merecido reconhecimento que nunca foi feito…

A toda a guarnição desta viagem, bem como ao pessoal do Exército que nos acompanhou, um saudoso e carinhoso abraço.