19/01/14

HISTÓRIA À VISTA - 33

          HISTÓRIA À VISTA N.º 33, da autoria do 1.º Comandante do Navio de Apoio “NRP São Miguel” - CMG REF Oliveira e Costa (1985-1988), versando sobre o fim da estadia nos EUA e, regresso ao mar.

MEMÓRIA n.º 13: "Chá!"

Depois de uma estadia de cinco dias, de 12 a 17SET87, deixámos MOTBAY ao fim do dia. O tempo baixara muito. Ainda antes da meia-noite já chovia copiosamente e estrondosos trovões eram precedidos de tremendos e brilhantíssimos relâmpagos que nos acompanharam por mais de quatro horas. A nossa estadia em N. Jersey fora comovente junto da nossa gente!
A comunidade portuguesa ali residente não sabia o que havia de nos fazer, em retribuição, pelo prazer que lhes tínhamos levado com a nossa presença. Largámos do cais dizendo adeus aos que ali quiseram estar a despedir-se apesar de, na madrugada seguinte, terem de sair para o trabalho, sempre exigente ao longo da semana. Só nas sextas-feiras à noite e nos sábados gozavam a família.
Nos outros dias era trabalhar e amealhar para, nas férias, virem à Terra ou juntando-se aos outros familiares, ali residentes, suportarem as despesas dos que por cá ficaram. Assim viam-se todos, festejavam a Família, e saía mais barato “o reencontro”, nos EUA. Para esses, que estavam do outro lado do “lago”, não era o mesmo que ir à Terra, em Portugal, mas… Aquela noite foi uma noite trabalhosa pelo cuidado exigido com a navegação.
No dia seguinte durante toda a manhã choveu, e bem! Depois levantou. Um sol radioso e, o tempo, foi ficando quente e opressivo. O pessoal continuava interessado no navio e cuidadoso no serviço. A partir da Horta instituímos a bordo, e para valer durante a viagem, quando a navegar, um novo costume onde o jantar dos Oficiais, às quintas-feiras, passou a ser orientado, na cozinha, pelos mesmos manifestando cada um e “democraticamente” os seus dotes culinários! Logo no início foram aprovados com discursos de circunstância e aplausos, os “Quiches” do Imediato, Cte. Meyrelles, a “Torta de Cenoura” do AN,  Chefe do Serviço de Abastecimento, Ten. Soares Lopes e o “Irish coffee” do Dr. Silva Pires.
Também para os almoços de quarta-feira passaram a ser convidados dois sargentos e duas praças. A vida a bordo ia-se cumprindo. A próxima passagem por Fortaleza, com ETA para 29SET, era aguardada por todos com expectativa! Em qualquer conversa vinha sempre à baila a próxima chegada ao Brasil! Era uma tirada longa de 12 dias. O tempo mantinha-se quente. O pessoal começava a mostrar “cansaço” devido aos aparelhos de ar condicionado sempre com limitações no seu funcionamento.
No dia 19SET, já ao fim do dia, passámos ao norte das Bermudas. Não acreditava em bruxas… mas resolvera passar por fora do “Triangulo das Bermudas”! No dia seguinte, uma calmaria opressiva sem uma aragem sequer, mar chão por vezes estanhado, onde se iam descobrindo pequenos redemoinhos indiferentes à passagem do navio. Fazia impressão – uma assustadora impressão! Recordei como eram semelhantes aos que vira no rio Tejo quando, bem pequeno, o meu pai me levava a passear ao domingo, nos cacilheiros, para ver os golfinhos!
O medo que então sentira ressurgira agora! Ver a água a rodopiar e a entrar no “buraco”, que não tinha mais de um metro de diâmetro, trazia uma sensação de insegurança muito real. Havia silêncio, só mar e céu, sem nuvens, e de uma cor azul difusa e pardacenta, sem navegação à vista. Era só o S. Miguel “marchando”, num meio que parecia hostil, envolto numa muito ténue e transparente neblina, morna e opressiva! Recordei contos antigos e textos lidos relativos à vida a bordo no tempo dos descobrimentos.
O que seria pairar, numa zona como aquela, nos navios de vela daquele tempo? Os aparelhos de ar condicionado iam “dando o tiro” de forma sequencial! Recordo quando das minhas “andanças” pelo navio de encontrar o 1º Ten. Eng.º Castro Figueiredo na sombra da baleeira, por debaixo da asa da Ponte, de cócoras, todo encharcado em suor e “às voltas” com um equipamento “esventrado” tentando perceber a razão da “sua” teimosia em não funcionar correctamente.
A maioria das avarias era provocada pelo incorrecto manuseamento dos “beneficiários” provocando desnecessárias avarias ou erráticos funcionamentos! Comportamento difícil de contrariar face aos 42 graus centígrados que se faziam sentir no interior dos alojamentos! Dos equipamentos existentes somente cerca de metade ainda trabalhavam e, mesmo assim, de forma deficiente! Embora requisitada a reparação, ou eventual substituição, dos equipamentos avariados, nunca tal foi superiormente considerado!
O aparelho instalado na camarinha tinha avariado ainda antes da chegada ao Faial mas, como tinha o privilégio de ter “janelas” para o exterior, passara bem sem ele até ali. Agora sentia-se bem a sua falta! Um dos alojamentos mais frescos era a câmara dos Oficiais e por lá nos recolhíamos e convivíamos sempre que possível. Os dias iam passando mornos, cansativos e desgastantes. Já a meio da viagem o Imediato contou-me uma “peripécia” vivida pelo impedido dos Oficiais, o Marinheiro Mira.
Quando trazia chá frio para a Câmara, a pedido dos Oficiais que ali se encontravam, foi parado pelo Sargento Enfermeiro que exigiu saber o que levava no bule. Quando o Mira respondeu que era chá cresceu para ele enquanto incrédulo e em voz alta repetia:
- Chá?.
De seguida levantou a tampa para cheirar o conteúdo! Terminada a observação deixou-o seguir. Ouvido o relato inquiri preocupado se havia alguma razão especial para o sucedido. A explicação foi simples. Do aprovisionamento autorizado a embarcar para a cantina, nesta viagem, contavam-se algumas caixas de Whisky quantidade que, desde logo, foi considerada reduzida - raiando o ridículo - face às actividades de representação que se esperavam vir a concretizar.
Não tendo merecido acolhimento favorável, o nosso pedido de reforço, propôs o Oficial Imediato, pelo conhecimento de situações semelhantes que estiveram na origem de alguns problemas, que fosse estipulada, logo no inicio da viagem, a distribuição do material para representação, pelas câmaras dos Oficiais, Sargentos e refeitório sendo o remanescente equitativamente distribuído pelo pessoal evitando-se, logo à partida, o eventual surgimento de murmúrios ou de situações desnecessárias.
Aceitei naturalmente. Aquele tempo quente e enfadonho, desde a saída dos “States”, tinha acelerado o consumo das bebidas e o Sargento Enfermeiro pressupôs que a câmara de Oficiais estava a usufruir de tratamento diferenciado… - o que não era verdade. O Chefe do Serviço de Abastecimento e o Imediato foram cuidadosos e a distribuição fora feita dando conhecimento à guarnição do que fora decidido pelo comando e, agora, aquela “ocorrência” não se encaixava, nos meus padrões de disciplina, podendo dar origem a desagradáveis situações futuras.
A minha preocupação, na apreciação do comportamento do pessoal, infelizmente, tornara-se real. Estava na altura de falar com Lisboa! Não podia deixar que esta “ocorrência” contaminasse uma guarnição até ali esforçada, cuidadosa e impecável. Dos EUA enviara, para o Cte. Abrantes Lopes, no GABCEMA, uma extensa carta dando conta da viagem, das minhas alegrias, dos sucessos, pelo menos como eu os considerava, do estado do pessoal e do seu comportamento, das minhas ansiedades e preocupações onde incluíra algumas considerações sobre o Sargento Enfermeiro que, no relacionamento social mostrava um comportamento muito confiado, deixando-me intuir uma apreciação negativa.
Na Cabine em comunicação com Lisboa, na presença do Imediato e do Sargento de comunicações, fui adiantando que a viagem continuava calma, embora trabalhosa pelas avarias que iam surgindo, nos diferentes serviços o que, a par com a condução do navio, ia mantendo toda a guarnição ocupada. O tempo morno, opressivo e maçador que se fazia sentir ia provocando um natural “cansaço” no pessoal, agravado pelas continuadas avarias nos aparelhos de ar condicionado.
Apesar do saber e dedicação do pessoal havia limitações que só a indústria particular podia efectuar. A resolução da maioria das avarias a bordo de um navio mercante tem especificidades e filosofias bem diferentes das de um navio de guerra. Apesar de tudo íamos conseguindo manter o “S. Miguel” operacional. Continuava confiante no pessoal, no seu bom comportamento e esperava não ter problemas disciplinares… O Cte. Abrantes Lopes que continuava a acompanhar, a “vida” do navio, com a maior atenção parecendo ler-me o pensamento respondeu dizendo:
- “o Almirante continua empenhadíssimo no sucesso da Missão do “S. Miguel”, pediu-me para me manter a par do evoluir da viagem e que qualquer problema disciplinar deveria ser tratado com a brevidade possível podendo, em caso de reconhecida gravidade, desembarcar e “recambiar”, para Lisboa, o pessoal em falta!
Na despedida disse ainda:
- “O navio não deve ser distraído da Missão que lhe foi atribuída”.
Agradeci sensibilizado o cuidado e atenção reafirmando a nossa intenção de assim continuar a proceder. Certamente que, logo a seguir, o “recado” de Lisboa deve ter sido entregue ao destinatário… Naquele dia à noite o ambiente a bordo estava mais “leve” e nunca mais senti qualquer atitude de desconfiança ou menos respeitosa entre elementos da guarnição. O sigilo e confidencialidade do que se passara na Cabine “foram preservados” tal e qual como eu desejava! Considerei essa atitude como uma “quebra de segurança piedosa”!
Dois dias antes da prevista aterragem a Fortaleza, domingo dia 27SET celebrámos a “Passagem da Linha” com a tradicional Festa do Rei dos Mares, precedida de um almoço de churrasco, na Popa, a que não faltou o bolo. Sobre a tampa do Porão n.º 2 foram colocados artefactos de fortuna mobilando, de forma digna embora modesta, um improvisado tribunal onde iriam ser, ali mesmo e no acto, julgados, sentenciados e punidos de forma exemplar, todos aqueles que ousaram enfrentar e afrontar o “Neptuno, Rei dos Mares”!
A mim, apesar das prerrogativas de comandante do NRP “S. Miguel” que julgava intercederem a meu favor, de nada me valeram, antes pelo contrário. Em manifesto excesso de zelo fui sentenciado, ao que disseram, de forma exemplar e com sentença agravada, com pagamento em vitualhas, excesso justificado por imoderação de linguagem na apreciação do trabalho de terceiros ao elogiar de forma excessiva e desnecessária o desempenho do Mestre, Sarg. Vasconcelos, do Despenseiro, cabo TFD João Carrapeto e do Sargento Máq. Canseiro.
A todos os julgados foi entregue Certidão do Acto que de futuro serviria de livre-trânsito. Documento feito, em cartão timbrado, e selado, do NRP “S. Miguel” no computador do Ten. Pico, que o adquirira quando da passagem pelos States. Rezava como segue.

Por Graça de Sua Majestade “Neptuno Rei dos Mares”, certifico que nos idos de 27 de Setembro, navegou pelas águas de latitude zero a bordo do “ SÃO MIGUEL ”, Navio da Republica de Portugal d’aquem e d’alem mar Açores, Madeira e Macau, o Senhor:

29959. Cap. Frag. JOSE MANUEL RODRIGUES DE OLIVEIRA COSTA

Conforme usos e costumes, pela incautelencia foi justamente julgado e severamente punido pelo Tribunal de Sua Majestade, ficando assim autorizado a passar eternamente,
Assinado no MAR ATLANTICO, 27 de Setembro de 1987 pelos Presidente, Juiz e Escrivão.

No dia da chegada a Fortaleza ainda a 50 milhas de terra, aos primeiros alvores, passámos por uma frágil Jangada do Ceará pairando e à pesca com um só pescador. Embarcação utilizada na pesca artesanal, no alto mar, feita com seis toros de madeira leve! Habituados a um S. Miguel espaçoso foi de todos grande admiração a fragilidade e pequenez daquela embarcação à vela que mais parecia uma rude jangada - que o era de facto - a tão grande distância de terra.
O dia crescia rapidamente ventoso e um sol brilhante produzindo, naquele mar picado de vento, fortes e resplandecentes reflexos esverdeados ao longo de toda aquela vasta planura aquática. Até entrarmos no porto fomos sempre avistando jangadas algumas delas com dois pescadores. O vento fresco fazia levantar uma “poeira” do mar deixando entender num horizonte difuso e baixo, cor de areia, onde se ia descortinando conforme o navio avançava, dum aglomerado de torres num extenso areal, uma enorme cidade junto ao mar.
No cais atracámos logo a seguir ao Navio Escola “Custódio de Melo” que ali se encontrava em Viagem de Instrução de Cadetes. A Banda, embarcada no Navio Escola, estava formada no local onde atracámos e tocou durante a nossa faina. Foi o primeiro momento alto da nossa chegada a Fortaleza, Brasil, depois de oito dias de uma cansativa e trabalhosa viagem.
Por determinação de Lisboa foi requerido, à indústria particular, efectuar as reparações consideradas inadiáveis, face ao próximo movimento, até Maputo, que demoraria cerca de 18 dias sendo a autonomia do navio de 21. Estes pequenos fabricos prolongaram a nossa estadia, em Fortaleza, por mais cinco dias, num total de oito enternecedores e intensos dias! O Destino ia-nos “compensando” das nossas dores, suportadas nos dois últimos e longos anos vividos no NRP “S. Miguel”!
O desejo acalentado por muitos de pisarem terras do Brasil estava quase a cumprir-se. As espias já estavam passadas a terra e o navio amarrado!