No âmbito do "CENTENÁRIO DOS SUBMARINOS EM PORTUGAL", apresento a 31.ª “HISTÓRIA À VISTA”, da autoria do Comandante Cunha Serra (CMG REF), Oficial da Armada especializado em Armas Submarinas e com o curso de especialização em Submarinos.
AS PEQUENAS INJUSTIÇAS DA MARINHA
Esta pequena história de Marinheiros tem o mar como cenário e os homens que serviram nos navios da Marinha de Guerra Portuguesa como protagonistas. Passou-se a bordo de um submarino a navegar algures no Oceano Atlântico há mais de 30 anos…
Para quem está menos habituado a este tipo de navios, importa dizer que os submarinos são navios vocacionados para navegarem quase exclusivamente abaixo da superfície das águas do mar e que, por conseguinte, só raramente o fazem à superfície, apenas quando necessitam de se deslocar mais rapidamente em trânsito, já que conseguem manter uma velocidade média de deslocação três vezes superior à que normalmente utilizam quando mergulhados nas águas do oceano.
Outra característica muito particular dos submarinos prende-se com a sua habitabilidade essencialmente “espartana” em que a exiguidade do espaço disponível para o total de homens que o guarnecem e as duras condições de vida, moldam uma “mentalidade” muito particular quer na vivência de bordo quer no relacionamento profissional e humano entre Oficiais, Sargentos e Praças, contribuindo para formar aquilo que se designa como “espírito submarinista” que, sem beliscar minimamente o relacionamento hierárquico normal existente entre as diferentes categorias militares, proporciona uma vivência humana peculiar e única, só possível num tipo de navio onde qualquer má decisão ou qualquer manobra executada por qualquer homem que participa, ao seu nível, na condução do navio, pode significar a perda irremediável do mesmo e a consequente morte de toda a guarnição.
Nesse começo de dia já distante, navegava penosamente o tal submarino à superfície, debaixo de forte tormenta com chuva e vento forte, com mar grosso a alteroso.
Na ponte, os homens de quarto entorpecidos pelo frio, encharcados pela chuva e pela surriada levantada pelo vento quase ciclónico, permanentemente desequilibrados e nauseados pelo balanço tipo “parafuso” que o mar desencontrado provocava na estrutura metálica, contavam mentalmente os minutos em falta para serem rendidos e poderem descer para o interior do submarino onde, apesar do cheiro característico e permanente que o caracteriza e na altura agravado com o odor acre de restos de comida recentemente regurgitada, sempre seria possível encontrar um pouco mais de calor que permitisse aliviar aquela sensação extremamente desagradável de humidade impregnada até aos ossos.
No interior do navio, o mesmo forte balanço provocava os seus maiores ou menores efeitos no estado físico dos homens, fazendo com que a grande maioria da guarnição, à excepção dos que estavam de serviço de quarto, se tivessem refugiado nos respectivos alojamentos onde, as poucas conversas que se ouviam não passavam de meros sussurros, quase totalmente abafados pelo rugido característico dos motores “diesel” à máxima potência possível face ao estado do mar.
Na câmara de Oficiais, localizado a vante do navio e exposta em permanência à passagem obrigatória de pessoal que tinha que se deslocar entre o alojamento das Praças situado no extremo de vante e os postos de serviço do navio localizados mais a ré, o ambiente estava mais animado e um grupo de 4 Oficiais, incluindo o Comandante e o Imediato, sentados à mesa de refeições procuravam, não sem alguma dificuldade por força do balanço, sorver as suas chávenas de café e comer as suas torradas acabadas de fazer na copa de Oficiais pelo Oficial mais moderno, já que a cozinha se encontrava encerrada há várias horas e o homem de apoio à copa estava há mais de meia hora a “deitar a carga ao mar” na ponte do navio.
Por coincidência, quase todos os Oficiais presentes naquele momento na câmara eram verdadeiros “Lobos de Mar” praticamente imunes ao enjoo, fosse qual fosse o tipo ou grau de intensidade de balanço, pelo que a conversa desenrolava-se de forma quase normal e os comentários jocosos surgiam com alguma frequência, sempre que na copa se ouvia o ruído correspondente ao estilhaçar de algum prato ou chávena em resultado de mais um brusco safanão que o mar no seu movimento desencontrado provocava ao longo do interior do navio.
Nesse momento, saído de trás da cortina de acesso ao alojamento das Praças e num passo o mais sincronizado possível com os movimentos bruscos do navio que faria inveja a qualquer pobre bêbado em último estado de embriaguez, surge a figura de um dos Marinheiros mais carismáticos de bordo, competentíssimo homem do leme do seu quarto, normalmente sempre bem-disposto e de resposta fácil, fazendo um esforço evidente para manter a dignidade que o enjoo naquele momento lhe queria roubar, pálido, desgrenhado, tentando passar o mais direito possível perante aquela pequena plateia que naturalmente o olhava. Parou solidamente agarrado à antepara do alojamento, encarou lentamente os Oficiais que comiam o seu pequeno-almoço um a um com a evidente “inveja” que o seu estômago revoltado exigia, respirou fundo como que a tomar ânimo para dizer algo muito importante, sorriu palidamente e, depois de pedir autorização ao Comandante para falar, disse:
- “Senhor Comandante, peço desculpa o atrevimento mas eu acho que Deus não é justo! É que até no enjoo, os Oficiais são beneficiados. Desejo bom apetite a todos já que o meu se foi há muitas horas…”.
E desapareceu bamboleante atrás da cortina de acesso à área operacional do navio a caminho de mais quatro horas de serviço de quarto.
Algumas horas depois da ocorrência deste episódio, o submarino voltou ao seu mundo de águas profundas onde o silêncio absoluto e a quietude da massa líquida que o rodeia retemperam de imediato a força anímica dos homens que rapidamente esquecem as horas menos boas que acabaram de passar e que normalmente nunca mais serão recordadas, excepto para quem acabou de contar esta história…e que sabe o que é o enjoo.