21.ª “HISTÓRIA À VISTA”, memória do 1.º Comandante do Navio de Apoio “NRP São Miguel” - CMG REF Oliveira e Costa (1985-1988), versando sobre os preparativos da viagem do navio a Moçambique.
MEMÓRIA N.º 6: Conseguimos…
Afinal o rumor ganhara consistência! Estávamos em finais de Abril de 87 e tudo indicava que iríamos a Moçambique. Portugal, respondeu afirmativamente ao apelo internacional do governo moçambicano. A Marinha escolheu o “nosso” navio para levar o auxílio de emergência. Já tínhamos dado provas de que podíamos navegar contra mares ventos e… alguns Almirantes, como dizíamos com graça e alguma “respeitadora” malícia!
A nossa vivência a bordo era um “calmo e encadeado sobressalto!”, fazendo lembrar os Açores onde, com frequência, temos as quatro estações do ano no mesmo dia! Assim corriam os nossos dias no seio da Marinha. Ora éramos acolhidos com respeito, amizade e desejados ora olhados de soslaio, sem carinho e alguma desconfiança. Afinal éramos iguais a todos os outros! Na realidade o “São Miguel” também mercê da sua guarnição, diga-se, já conquistara o seu espaço e por ninguém já era ignorado!
Para o CEMA o NRP “São Miguel” merecia-lhe consideração, respeito e, quando se falava nele, o seu rosto revelava a alegria que lhe dava apreciar o crescer do navio, no seio da Marinha, qual filho amado. Já que, para aqueles que continuavam insatisfeitos pela maneira como entrara, sem os doutos e mandatórios estudos, mantinham-no à cabeça de qualquer lista de proscritos… continuavam a considerá-lo como “Persona non grata”.
O navio viera para a Marinha pela mão do CEMA e que disso dera informação ao seu Estado-Maior numa simples reunião antes do almoço! No dia 8NOV85 pelas 1430 efectuava-se na SSFA a escritura de compra e venda do NM “Cabo Verde” para a Armada. É fácil, agora, de entender porque não havia Oficiais disponíveis/interessados para ali prestarem serviço. Eu terminara a meu pedido uma comissão na Capitania do Porto do Douro, como Oficial Adjunto, e seria “salutar” manterem-me ocupado, e afastado, pelo que fui mandado apresentar-me no “Cabo Verde”.
A maneira como forcei a minha saída do Douro não foi bem aceite ficando, por isso, igualmente “inscrito” nos dispensáveis. Conseguimos ultrapassar e bem todas as contrariedades! Já o “São Miguel” não teve a mesma sorte pois, finalmente, em 1994, oito anos depois de aumentado ao efectivo, foi decidido afundá-lo, no mar alto, carregado com munições sentenciadas da Marinha, Exército e Força Aérea.
Mesmo assim, depois de “consumidas” todas as suas resistências, sozinho, triste e abandonado a uma luta sem glória, não prescindiu de manifestar orgulhosamente a sua indignação “libertando-se” com uma estrondosa explosão, sentida a milhares de quilómetros de distância, conforme registos em diversos detectores sísmicos, qual resposta, vibrante e sentida, a um moderno, incoerente e falso Adamastor! Aos que assistiram ninguém ficou indiferente… Acompanhando-o também morrera uma parte de nós. Fica a memória de momentos tão saudosos e inolvidáveis… restava-nos o Encantamento da Saudade.
O “São Miguel” já tinha realizado, em 1986, dois lançamentos ao mar de munições sentenciadas e, com a experiência adquirida, poderia continuar a fazê-lo. A bordo a vida continuava. Contactos, desenhos, beneficiações, pequenos fabricos enfim tudo aquilo que pudéssemos “conquistar” merecia a nossa atenção e cuidado. A actividade a bordo continuava intensa. Em JUN87 saía de fabricos da Setenave, em Setúbal.
Reuniões sobre a missão do navio a Moçambique começadas em Maio, desse ano, continuavam no Estado-Maior, onde o MNE e a Ordem Soberana de Malta eram representados por dois elementos, o Embaixador Lopes da Costa e o Dr. Marcus Noronha que, muito rapidamente, passaram a ser considerados como elementos honorários, da nossa guarnição, face ao seu entusiasmo pelo navio e pela missão em causa. O “São Miguel” ganhara no MNE e na Ordem Soberana de Malta dois defensores poderosos!
Uma velada tentativa de substituição do comando mereceu, por parte daqueles elementos, uma posição séria de repúdio que fez esmorecer essa ou quaisquer outras tentativas destabilizadoras da Missão. A partir daí passámos a estar na ribalta. No EM e no CNC sucediam-se as reuniões para os necessários acertos sobre a viagem a Moçambique. Na última semana de Julho os dois elementos do MNE acompanhados do Cte do “São Miguel” deslocaram-se a Maputo para, com o Governo de Moçambique, se combinarem os detalhes e pormenores da Missão.
É aí que o Governo de Maputo pede para serem incluídos, no pacote da oferta, produtos não contemplados inicialmente, conservas de peixe, vinho e chouriço, dentre outros. Ficou também acordado que o plano de descarga do navio seria definido quando da chegada a Maputo, e na presença da oferta, decidindo-se então para além dos portos principais de Maputo, Beira e Nacala, quais os novos centros populacionais, ao longo da costa, a contemplar.
Em MAI87 apresentava-se o Médico e, no mês seguinte, o oficial AN. A alegria motivada pela viagem, de cerca de 4 meses, onde escalaríamos Açores, América, Brasil, África do Sul, Moçambique, S. Tomé e Príncipe e Cabo Verde era indescritível e palpitante em todos os elementos da guarnição. A bordo “vivia” uma família feliz e, unida.
Por oposição fez-me, agora, lembrar uma recente observação do meu neto mais novo, de dois anos, certa manhã de sol de Inverno, na Costa de Caparica, quando me puxou para dizer, numa entoação triste, “que o mar estava sozinho…” Quando quis saber da razão respondeu-me “porque não tinha barcos! ”. Quantas vezes ao longo da minha vida vivi, no mar, sozinho e voluptuosamente essa imensidão vazia e sublime…
A boa disposição imperava. Todos os dias eram apresentadas a bordo novas informações dos locais a escalar… O estudo da viagem ia sendo feito por todos! O Clínico ia preparando a guarnição para os cuidados primários de saúde e também dos secundários!
O HIV era tema de todas as conversas e o comando conhecedor dos seus homens e da maneira de ser do povo português, em particular do Marinheiro que, caprichando por amizade e amor ao próximo, cumpriria, certamente o já conhecido aforismo “uma mulher em cada porto e um porto em cada mulher”, e ciente da preocupação de quem deveria zelar pela saúde dos mesmos, elaborou através do CA e na sequência da intensa mentalização, fruto da evidente preocupação do Facultativo, uma Requisição de Preservativos que acrescentou ao “Quadro do planeamento logístico e financeiro da viagem” dirigido ao EMA.
Juntamente com a Requisição seguia a justificação julgada pertinente bem como do critério utilizado na quantificação apresentada, baseado em meio preservativo homem/dia. O número de dias considerados para o cálculo foram os previstos pela III DIV e indicados no planeamento da viagem por ela elaborado. A resposta foi negativa esclarecendo ser inaceitável a satisfação de tal pedido!
A 16AGO87 iniciámos a carga do navio. Uma dor de cabeça para o Imediato. Sabíamos o que íamos carregar mas desconhecíamos os locais onde a mesma iria ser descarregada! Era uma actividade nova. Carregar um navio mercante. Lembrava-me o que se tinha passado com o NRP “Afonso de Albuquerque” quando em 1942 fora a Timor, quando da invasão japonesa… O pessoal do Exército, que foi inexcedível no cumprimento da sua missão, procedia ao transporte do material para a Doca da Marinha procedendo, de seguida, à sua estiva a bordo.
O pessoal do navio orientava a estiva e trabalhava com os paus de carga. A guarnição do navio desempenhou as funções normais do pessoal da Marinha mercante só que a nossa formação não contemplava tais actividades mas, nem por isso, foi notada qualquer anomalia no carregamento! Embarcámos ainda, no convés, 4 viaturas LARC dos FZ’s, anfíbias e com a capacidade de transportarem 5 toneladas cada respondendo assim à solicitação do Governo Moçambicano de desembarcar parte da oferta ao longo da costa aberta daquele país.
Tínhamos conseguido merecer e ser merecedores da confiança de todos.
Ao CMG AN Júlio Soares Lopes, então Chefe do Conselho Administrativo do NRP “São Miguel”, um muito grato e saudoso abraço.