ESCOLA NAVAL
Porque tem de ser uma escola exigente?
Reflexões dum velho marinheiro
(1259/22)
Que diferenças existem entre as exigências de uma
universidade e as de uma escola superior militar, mais exactamente a Escola
Naval?
Enquanto a Universidade prepara
profissionalmente os seus alunos até concluírem os seus cursos, a Armada,
através da Escola Naval, tem de assegurar que os seus cadetes, num limitado
número de anos, sejam, para além dos seus cursos, ao longo das suas vidas,
enquanto militares e marinheiros, líderes profissionalmente competentes em
diversos domínios técnicos, tecnológicos e de gestão da própria Armada,
independentemente dos cursos que venham a frequentar para atingirem,
devidamente avaliados, as responsabilidades inerentes ao topo das suas
carreiras.
De
facto, quando um jovem decide que curso universitário pretende fazer, pondera,
além das suas próprias inclinações, a sua capacidade de almejar a admissão numa
dessas Faculdades, a de concluir o curso com folgado êxito e, lançado num
mercado competitivo, a de vir a alcançar uma posição profissional que sempre se
deseja destacada. Claro que muitos aspectos de ordem prática, terá de enfrentar; em
que universidade, em que cidade e tudo o mais que isso implica; as propinas, o alojamento,
a alimentação, os transportes, os livros, além de outros, e finalmente a
disponibilidade da família para suportar os custos decorrentes de tal
pretensão.
Claro
que um jovem que se decida por uma carreira militar encontrará, quando
admitido, após a prestação de provas literárias, médicas, físicas e
psicotécnicas, muitos desses problemas resolvidos uma vez que, no final dos
anos cinquenta do século passado, o Estado Novo, prevendo o que se poderia vir
a passar no Ultramar, ter atempadamente reconhecido a necessidade de alargar os
quadros de oficiais dos três ramos das Forças Armadas, especialmente do
Exército, e ter abolido todos aqueles custos, passando a fornecer um conjunto
completo de equipamentos (sobretudo os dispendiosos uniformes, etc.) e a
contribuir ainda com uma pequena mesada, investindo assim nos rapazes que tendo
concluído o ensino liceal, o actual 12º ano, mas que não tendo grandes
oportunidades de frequentar qualquer uma das únicas universidades (as de
Coimbra, Lisboa ou do Porto) pudessem sentir-se aliciados por um profissão
militar, então muito prestigiada, mas sabidamente mal paga, a “miséria dourada”
como então se dizia.
Em
1958, a Escola Naval seguiu os passos da Escola do Exército que englobava as
actuais Academias Militar e da Força Aérea, incluindo os Estudos Gerais
Preparatórios, feitos ali ou nas universidades, no primeiro ano da sua Nova
Reforma, com curricula adequados ao
tempo. Desta forma se alargou o recrutamento de alunos, da escassa vintena/ano,
para cerca de sessenta vagas, atingindo, logo naquele ano, o seu Corpo de
Alunos a centena de cadetes.
Este
figurino, reajustado às novas realidades, prevalece.
Esta
aliciante face da moeda tem, no entanto, o seu reverso. Enquanto o jovem
universitário tem, num percurso
isolado, de buscar o maior êxito pessoal face aos seus colegas e alcançar, por
si, resultados que o tornem elegível na vida profissional, os alunos militares,
em regime de internato, estão, ainda que o esqueçam, sujeitos a um escrutínio
diário dos seus camaradas (aqui começam as grandes diferenças) e, mais atentos,
ao exame dos seus superiores militares e ao dos seus professores, em termos da
sua integração, aptidão e desenvoltura intelectual que garantam a sua
capacidade de vencer, ao longo da sua carreira, os vários degraus a transpor.
E
porque o que nos ocupa é a Escola Naval, acentuamos; integração no convívio em
espaços tão confinados quanto humanamente heterogéneos e sujeitos a
adversidades diversas, naturais e outras, como ocorre num navio de guerra no
alto mar, a requerer uma perfeita e universal adaptação, no tempo e no espaço.
Claro
que com a integração numa grande equipa hierarquizada, militar e
funcionalmente, a guarnição de um navio de guerra, importa que a sua aptidão
seja também marinheira, numa resultante específica da secular, mas dinâmica,
cultura militar-naval.
Finalmente, importa que incorporem um
conjunto de diferentes requisitos, de suporte à rápida evolução das
tecnologias, e que, face a uma variedade de inesperadas e simultâneas
ocorrências que a bordo surgem, em tempo de paz e sobretudo em combate,
simulado ou real, lhes assegurem a tomada de decisões rápidas e oportunas,
dir-se-á, simplificando, de “bom senso”.
E,
sempre presente, o Direito Internacional Marítimo e a legislação em vigor no mar,
da nacional à da U.E..
Isto
é assim, porque o será ao longo de uma carreira naval, enfrentando cada vez
mais e mais complexas e exigentes responsabilidades, sempre sob olhares
cruzados.
Neste
quadro, incluem-se os olhares dos seus novos pares, os oficiais, mas também os
dos sargentos e das praças, homens e mulheres, com uma experiência prática em
situações que serão, para si, novas, mas às quais não lhes podendo fugir, serão
chamados a assumir decisões que irão, fatalmente, passar pelo exigente crivo de
quem espera uma orientação acertada.
Note-se
que mesmo que recorram, se puderem fazê-lo em tempo oportuno, à experiência dos
seus chefes directos (o que é estimulado), não deixarão de estar a revelar a
sua insegurança, apesar da sua inexperiência ser de todos, superiores e
inferiores, conhecida e já experimentada.
Muito
mais que mandar, esta arte de Comandar – COmandar - ir-se-á aperfeiçoando neste
contacto diário com os subordinados e os problemas que se apresentarem, na
conquista da sua Lealdade em retorno da Lealdade para com eles e da sua
competência profissional e frontal humildade.
Assim
se irá, pela mútua COnfiança, alicerçando a COesão entre os que COmandam e os
seus COmandados.
Mas
vamos por partes.
A
Armada tem, antes de mais, presente que irá entregar a cada jovem oficial, a
bordo de um navio, a responsabilidade por vidas humanas que além do seu valor
intrínseco requereram ainda um investimento considerável na sua
profissionalização e a que estão agregadas famílias que, confiadamente, esperam
os seus regressos, sãos e salvos.
Se
este aspecto é capital, mais mediático é o facto de um navio de guerra ser uma
arma extremamente cara que, poderemos comparar a um “enlatado”, densamente
habitado, do mais compacto e complexo
concentrado de tecnologias de que o País dispõe, para a ser operado nas mais
adversas circunstâncias, tanto em tempo de paz , como nas missões extremas de guerra, o objectivo central de
toda a formação militar-naval.
Por
isso o treino no mar é uma constante da carreira, pois, em cada patamar, os
exercícios assegurarão a maior probabilidade de êxito nos combates contra o
“inimigo”, bem como na contenção dos “danos” sofridos, de modo a assegurar o
sucesso operacional do navio, sem esquecer que em manobras internacionais as
guarnições dos navios da nossa Marinha de Guerra, serão avaliadas, sobretudo,
pelos nossos parceiros, como uma equipa de equipas que aos oficiais compete
construir.
Isto
no mar.
Mas
atracados, também. Aí, têm de saber participar nas reuniões de trabalho (os
“Briefings”, etc.), bem como estar nos convívios sociais que ocorrerem, a bordo
de outros navios de guerra ou em terra, e, identicamente, receber socialmente,
no seu navio, camaradas estrangeiros ou entidades oficiais.
Note-se
que a imagem de cada elemento da guarnição, em uniforme ou em traje civil (saber apresentar-se…), mulher ou
homem, contribuirá para a apreciação global do Navio, da Força Naval, da
Marinha de Guerra, da Armada e, claro, de Portugal. Uma só imagem negativa
perante militares ou civis, arruinará o esforço de todos e cada um.
Essa,
uma outra responsabilidade.
Muitas
vezes em portos a visitar, em simples trânsito ou por expresso interesse do
Estado em marcar uma presença, dissuasora ou de outra ordem, a missão será
tudo, menos bélica.
Nestes
casos, os oficiais, o alvo predilecto das elites locais, nacionais ou do país a
visitar, têm, tal como toda a guarnição, de saber cativar, cultivando um certo
tacto diplomático de modo a integrarem-se no estilo local, tantas vezes marcado
por costumes diferentes, civilizacionais ou, por vezes, até no âmbito de
culturas próximas da nossa que nos permita conhecer melhor o que ali se pensa
ou faz e que nos possa ser útil
E… perante nacionais?
Há,
normalmente, Portugueses nos portos estrangeiros que visitamos mas onde houver
Comunidades Portuguesas são, as guarnições, habitualmente recebidas de modo
amistoso e festivo e a quem terão, necessariamente, de retribuir.
Cada
oficial, como qualquer elemento da guarnição, tem de
saber receber todos os compatriotas que se apresentarem a bordo, dos mais
humildes aos melhor instalados na vida, quer em termos individuais, quer
representando grupos, e de corresponder às suas expectativas, fazendo-os
sentir-se em sua casa, mais coesos entre si e, assim, promovendo a sua própria imagem
no país de acolhimento.
Essas
missões são sempre, afectivamente, das mais compensadoras.
Mas
sobressaltos podem ocorrer.
Em
portos estrangeiros, com ou sem qualquer afinidade connosco, poderá o navio ter
de efectuar reparações ou aquisições que acentuam a responsabilidade de terem
de participar em negociações e de decidir contratos em que terão de equacionar
vários aspectos, defendendo os interesses nacionais sem descurar o interesse do
seu navio ou da sua guarnição.
Quantas
vezes, felizmente esporádicas, não terão de instalar a bordo equipas nacionais
ou estrangeiras, enviadas pela Armada, e de com elas navegar durante as
eventuais reparações, sempre de modo a garantir a completa operacionalidade
combatente do navio. Tudo isto requer um diálogo in loco e com a retaguarda, os Serviços, em terra, da Armada e,
directa ou indirectamente, com as entidades civis ou militares, nacionais e/ou
locais.
Mas
a carreira dos Oficiais da Armada não decorre só no mar.
Ao
saírem da Escola Naval os futuros oficiais terão de estar preparados para
enfrentar não só as missões para que forem nomeados, mas também os diversos
cursos, sempre de duração prefixada, a que serão submetidos ao longo da
carreira, de especialização técnico-naval ou para atingirem patamares em que
serão chamados a cargos de maior responsabilidade, em áreas muito
diversificadas, umas mais teóricas que outras, mas todas de aplicação prática
de ordem operacional, administrativa ou pedagógica, no mar, em terra e até no
ar:
-
No âmbito operacional, embarcados em navios combatentes ou não, nos
Estados-Maiores, a bordo ou em terra, sem esquecer os Fuzileiros, aonde poderão
ser chamados a desempenhar as inerentes funções, em terra ou embarcados;
-
Em termos administrativos acrescem as funções de apoio ao planeamento e à
corrente logística de toda a máquina que requer infra-estruturas de variada
ordem, impondo uma harmoniosa gestão de recursos, humanos e materiais, da mais
diversa complexidade, a corresponder aos meios, cada vez mais sofisticados, de
que teremos de dispor dado estarmos num mundo em contínua evolução.
-
Para que a Armada funcione serão
às diversas escolas chamados para aí concluírem a formação adequada ao
desempenho de funções especializadas e poderem vir a integrar os seus corpos
docentes, em funções pedagógicas adequadas ao nível dos vários cursos, dos mais
elementares aos mais avançados.
A
par, sempre, os aspectos históricos e do Património material e até imaterial
que importará conservar ou mesmo cultivar e dar a conhecer dentro e fora da
Armada.
Falámos
de desenvoltura intelectual?
Esta
poderá ter de ser posta à prova em escolas a frequentar no estrangeiro ou perante
estrangeiros, convidados no âmbito dum profícuo intercâmbio internacional em
que mandamos e recebemos os melhores.
Mas
não se esgotam aqui os desafios da carreira militar-naval.
Poderão
prestar serviço em Estados-Maiores que antecipam as necessidades, propõem as
medidas e acompanham a execução dos planeamentos.
Importa
saber que as missões, quer no mar quer em terra, a que a seu tempo poderão
aceder os jovens formados na Escola Naval, se não esgotam na área militar-naval
que é o cerne da sua formação.
O
Serviço Público do Estado, no mar, atribui à Armada, desde longa data, missões
de fiscalização de ordem vária que, de entre outras (tráficos de pessoas,
armas, drogas…), a da pesca protagoniza, e que exige, além de uma aturada
presença, um perfeito conhecimento da legislação específica, nacional e
Internacional, bem como o conhecimento dos pesqueiros e das gentes do mar e,
sobretudo, das práticas ilícitas a mitigar.
Concomitantemente,
a par das acções de fiscalização em colaboração com outras autoridades, são lhe
atribuídas missões de busca e salvamento no mar (SAR) que, pelo seu carácter de
socorro, se tornam empolgantes vivências que, infelizmente, nem sempre ocorrem
com o habitual sucesso.
No
mar decorrem ainda, a bordo de navios especializados, as tarefas de Hidrografia
e de Oceanografia que, como a assistência aos Faróis, se desenvolvem em terra,
na aturada preparação ou actualização de cartas, etc. ou na preservação da
farolagem que internacionalmente assumimos ser da nossa responsabilidade.
Ainda
na área da Autoridade Marítima Nacional, no Continente e nas Regiões Autónomas,
está implantada uma organização costeira hierarquizada em que as Capitanias dos
Portos exercem num aturado exercício de prevenção, visando o cumprimento da
legislação bem como de assistência às gentes do mar e aos que o usufruem, a que
está associado o Instituto de Socorros a Náufragos.
A
poluição marítima que assola as costas, é
outra actividade que, como todas as outras, competirá aos jovens oriundos da
Escola Naval, um dia, combater. Estas e muitas outras em domínios mais
especializados que não citámos (v.g. em situações de catástrofe humana ou
natural) permitem aceder aos mais destacados postos ou cargos da carreira
naval.
Claro
que daqueles jovens se irá requerer, ao longo da vida, uma grande
disponibilidade para se acorrer às diferentes necessidades da Armada em todos
aqueles teatros de acção, implicando vastíssimas áreas, que em extremo, não nos
iludamos, poderão ser de guerra.
As
carreiras só terão de comum os postos da hierarquia militar pois o seu
percurso, para além das experiências de mar, pode ser, em terra, muito variado,
mais ou menos padronizado, mas raramente iguais o que, em si, é um aliciante.
No
nosso território, numa sociedade em que mais que o “ser”, prevalece o “ter” e,
mais ainda, o “parecer”, importa sobretudo, diferentemente dos civis que apenas
se representam a si mesmos, que os oficiais dêem de si uma imagem consentânea
com o estatuto a que têm direito, pelo seu comportamento social onde quer que
estejam, ombreando pelo seu estilo pessoal com as classes profissionais que
melhor cuidam da sua imagem e sabendo desembaraçadamente conviver, desde a
Escola Naval, com os seus pares universitários, donde sairão as elites, em
todas as oportunidades em que concorram, marcando, desde cadetes, a sua posição
no contexto do ramo das Forças Armadas que representam.
Ainda
lhe parece que a Escola Naval possa não ser uma escola exigente?