02/02/19

REFLEXÕES DE UM VELHO MARINHEIRO


ESCOLA NAVAL

Porque tem de ser uma escola exigente?

Reflexões dum velho marinheiro
(1259/22)

          Que diferenças existem entre as exigências de uma universidade e as de uma escola superior militar, mais exactamente a Escola Naval?
          Enquanto a Universidade prepara profissionalmente os seus alunos até concluírem os seus cursos, a Armada, através da Escola Naval, tem de assegurar que os seus cadetes, num limitado número de anos, sejam, para além dos seus cursos, ao longo das suas vidas, enquanto militares e marinheiros, líderes profissionalmente competentes em diversos domínios técnicos, tecnológicos e de gestão da própria Armada, independentemente dos cursos que venham a frequentar para atingirem, devidamente avaliados, as responsabilidades inerentes ao topo das suas carreiras.

          De facto, quando um jovem decide que curso universitário pretende fazer, pondera, além das suas próprias inclinações, a sua capacidade de almejar a admissão numa dessas Faculdades, a de concluir o curso com folgado êxito e, lançado num mercado competitivo, a de vir a alcançar uma posição profissional que sempre se deseja destacada. Claro que muitos aspectos de ordem prática, terá de enfrentar; em que universidade, em que cidade e tudo o mais que isso implica; as propinas, o alojamento, a alimentação, os transportes, os livros, além de outros, e finalmente a disponibilidade da família para suportar os custos decorrentes de tal pretensão.
          Claro que um jovem que se decida por uma carreira militar encontrará, quando admitido, após a prestação de provas literárias, médicas, físicas e psicotécnicas, muitos desses problemas resolvidos uma vez que, no final dos anos cinquenta do século passado, o Estado Novo, prevendo o que se poderia vir a passar no Ultramar, ter atempadamente reconhecido a necessidade de alargar os quadros de oficiais dos três ramos das Forças Armadas, especialmente do Exército, e ter abolido todos aqueles custos, passando a fornecer um conjunto completo de equipamentos (sobretudo os dispendiosos uniformes, etc.) e a contribuir ainda com uma pequena mesada, investindo assim nos rapazes que tendo concluído o ensino liceal, o actual 12º ano, mas que não tendo grandes oportunidades de frequentar qualquer uma das únicas universidades (as de Coimbra, Lisboa ou do Porto) pudessem sentir-se aliciados por um profissão militar, então muito prestigiada, mas sabidamente mal paga, a “miséria dourada” como então se dizia.
          Em 1958, a Escola Naval seguiu os passos da Escola do Exército que englobava as actuais Academias Militar e da Força Aérea, incluindo os Estudos Gerais Preparatórios, feitos ali ou nas universidades, no primeiro ano da sua Nova Reforma, com curricula adequados ao tempo. Desta forma se alargou o recrutamento de alunos, da escassa vintena/ano, para cerca de sessenta vagas, atingindo, logo naquele ano, o seu Corpo de Alunos a centena de cadetes.
Este figurino, reajustado às novas realidades, prevalece.
          Esta aliciante face da moeda tem, no entanto, o seu reverso. Enquanto o jovem universitário tem, num percurso isolado, de buscar o maior êxito pessoal face aos seus colegas e alcançar, por si, resultados que o tornem elegível na vida profissional, os alunos militares, em regime de internato, estão, ainda que o esqueçam, sujeitos a um escrutínio diário dos seus camaradas (aqui começam as grandes diferenças) e, mais atentos, ao exame dos seus superiores militares e ao dos seus professores, em termos da sua integração, aptidão e desenvoltura intelectual que garantam a sua capacidade de vencer, ao longo da sua carreira, os vários degraus a transpor.
          E porque o que nos ocupa é a Escola Naval, acentuamos; integração no convívio em espaços tão confinados quanto humanamente heterogéneos e sujeitos a adversidades diversas, naturais e outras, como ocorre num navio de guerra no alto mar, a requerer uma perfeita e universal adaptação, no tempo e no espaço.
          Claro que com a integração numa grande equipa hierarquizada, militar e funcionalmente, a guarnição de um navio de guerra, importa que a sua aptidão seja também marinheira, numa resultante específica da secular, mas dinâmica, cultura militar-naval.
          Finalmente, importa que incorporem um conjunto de diferentes requisitos, de suporte à rápida evolução das tecnologias, e que, face a uma variedade de inesperadas e simultâneas ocorrências que a bordo surgem, em tempo de paz e sobretudo em combate, simulado ou real, lhes assegurem a tomada de decisões rápidas e oportunas, dir-se-á, simplificando, de “bom senso”.
          E, sempre presente, o Direito Internacional Marítimo e a legislação em vigor no mar, da nacional à da U.E..
          Isto é assim, porque o será ao longo de uma carreira naval, enfrentando cada vez mais e mais complexas e exigentes responsabilidades, sempre sob olhares cruzados.
          Neste quadro, incluem-se os olhares dos seus novos pares, os oficiais, mas também os dos sargentos e das praças, homens e mulheres, com uma experiência prática em situações que serão, para si, novas, mas às quais não lhes podendo fugir, serão chamados a assumir decisões que irão, fatalmente, passar pelo exigente crivo de quem espera uma orientação acertada.
          Note-se que mesmo que recorram, se puderem fazê-lo em tempo oportuno, à experiência dos seus chefes directos (o que é estimulado), não deixarão de estar a revelar a sua insegurança, apesar da sua inexperiência ser de todos, superiores e inferiores, conhecida e já experimentada.
          Muito mais que mandar, esta arte de Comandar – COmandar - ir-se-á aperfeiçoando neste contacto diário com os subordinados e os problemas que se apresentarem, na conquista da sua Lealdade em retorno da Lealdade para com eles e da sua competência profissional e frontal humildade.
          Assim se irá, pela mútua COnfiança, alicerçando a COesão entre os que COmandam e os seus COmandados.
Mas vamos por partes.
          A Armada tem, antes de mais, presente que irá entregar a cada jovem oficial, a bordo de um navio, a responsabilidade por vidas humanas que além do seu valor intrínseco requereram ainda um investimento considerável na sua profissionalização e a que estão agregadas famílias que, confiadamente, esperam os seus regressos, sãos e salvos.
          Se este aspecto é capital, mais mediático é o facto de um navio de guerra ser uma arma extremamente cara que, poderemos comparar a um “enlatado”, densamente habitado, do  mais compacto e complexo concentrado de tecnologias de que o País dispõe, para a ser operado nas mais adversas circunstâncias, tanto em tempo de paz , como nas missões extremas de guerra, o objectivo central de toda a formação militar-naval.
          Por isso o treino no mar é uma constante da carreira, pois, em cada patamar, os exercícios assegurarão a maior probabilidade de êxito nos combates contra o “inimigo”, bem como na contenção dos “danos” sofridos, de modo a assegurar o sucesso operacional do navio, sem esquecer que em manobras internacionais as guarnições dos navios da nossa Marinha de Guerra, serão avaliadas, sobretudo, pelos nossos parceiros, como uma equipa de equipas que aos oficiais compete construir.
Isto no mar.
          Mas atracados, também. Aí, têm de saber participar nas reuniões de trabalho (os “Briefings”, etc.), bem como estar nos convívios sociais que ocorrerem, a bordo de outros navios de guerra ou em terra, e, identicamente, receber socialmente, no seu navio, camaradas estrangeiros ou entidades oficiais.
          Note-se que a imagem de cada elemento da guarnição, em uniforme ou em  traje civil (saber apresentar-se…), mulher ou homem, contribuirá para a apreciação global do Navio, da Força Naval, da Marinha de Guerra, da Armada e, claro, de Portugal. Uma só imagem negativa perante militares ou civis, arruinará o esforço de todos e cada um.
Essa, uma outra responsabilidade.
          Muitas vezes em portos a visitar, em simples trânsito ou por expresso interesse do Estado em marcar uma presença, dissuasora ou de outra ordem, a missão será tudo, menos bélica.
          Nestes casos, os oficiais, o alvo predilecto das elites locais, nacionais ou do país a visitar, têm, tal como toda a guarnição, de saber cativar, cultivando um certo tacto diplomático de modo a integrarem-se no estilo local, tantas vezes marcado por costumes diferentes, civilizacionais ou, por vezes, até no âmbito de culturas próximas da nossa que nos permita conhecer melhor o que ali se pensa ou faz e que nos possa ser útil
E…  perante nacionais?

          Há, normalmente, Portugueses nos portos estrangeiros que visitamos mas onde houver Comunidades Portuguesas são, as guarnições, habitualmente recebidas de modo amistoso e festivo e a quem terão, necessariamente, de retribuir.
          Cada oficial, como qualquer elemento da guarnição, tem de saber receber todos os compatriotas que se apresentarem a bordo, dos mais humildes aos melhor instalados na vida, quer em termos individuais, quer representando grupos, e de corresponder às suas expectativas, fazendo-os sentir-se em sua casa, mais coesos entre si e, assim, promovendo a sua própria imagem no país de acolhimento.
Essas missões são sempre, afectivamente, das mais compensadoras.
Mas sobressaltos podem ocorrer.
          Em portos estrangeiros, com ou sem qualquer afinidade connosco, poderá o navio ter de efectuar reparações ou aquisições que acentuam a responsabilidade de terem de participar em negociações e de decidir contratos em que terão de equacionar vários aspectos, defendendo os interesses nacionais sem descurar o interesse do seu navio ou da sua guarnição.
          Quantas vezes, felizmente esporádicas, não terão de instalar a bordo equipas nacionais ou estrangeiras, enviadas pela Armada, e de com elas navegar durante as eventuais reparações, sempre de modo a garantir a completa operacionalidade combatente do navio. Tudo isto requer um diálogo in loco e com a retaguarda, os Serviços, em terra, da Armada e, directa ou indirectamente, com as entidades civis ou militares, nacionais e/ou locais.
Mas a carreira dos Oficiais da Armada não decorre só no mar.
          Ao saírem da Escola Naval os futuros oficiais terão de estar preparados para enfrentar não só as missões para que forem nomeados, mas também os diversos cursos, sempre de duração prefixada, a que serão submetidos ao longo da carreira, de especialização técnico-naval ou para atingirem patamares em que serão chamados a cargos de maior responsabilidade, em áreas muito diversificadas, umas mais teóricas que outras, mas todas de aplicação prática de ordem operacional, administrativa ou pedagógica, no mar, em terra e até no ar:
- No âmbito operacional, embarcados em navios combatentes ou não, nos Estados-Maiores, a bordo ou em terra, sem esquecer os Fuzileiros, aonde poderão ser chamados a desempenhar as inerentes funções, em terra ou embarcados;
- Em termos administrativos acrescem as funções de apoio ao planeamento e à corrente logística de toda a máquina que requer infra-estruturas de variada ordem, impondo uma harmoniosa gestão de recursos, humanos e materiais, da mais diversa complexidade, a corresponder aos meios, cada vez mais sofisticados, de que teremos de dispor dado estarmos num mundo em contínua evolução.
- Para que a Armada funcione serão às diversas escolas chamados para aí concluírem a formação adequada ao desempenho de funções especializadas e poderem vir a integrar os seus corpos docentes, em funções pedagógicas adequadas ao nível dos vários cursos, dos mais elementares aos mais avançados.
          A par, sempre, os aspectos históricos e do Património material e até imaterial que importará conservar ou mesmo cultivar e dar a conhecer dentro e fora da Armada.
Falámos de desenvoltura intelectual?
          Esta poderá ter de ser posta à prova em escolas a frequentar no estrangeiro ou perante estrangeiros, convidados no âmbito dum profícuo intercâmbio internacional em que mandamos e recebemos os melhores.
Mas não se esgotam aqui os desafios da carreira militar-naval.
          Poderão prestar serviço em Estados-Maiores que antecipam as necessidades, propõem as medidas e acompanham a execução dos planeamentos.
          Importa saber que as missões, quer no mar quer em terra, a que a seu tempo poderão aceder os jovens formados na Escola Naval, se não esgotam na área militar-naval que é o cerne da sua formação.
          O Serviço Público do Estado, no mar, atribui à Armada, desde longa data, missões de fiscalização de ordem vária que, de entre outras (tráficos de pessoas, armas, drogas…), a da pesca protagoniza, e que exige, além de uma aturada presença, um perfeito conhecimento da legislação específica, nacional e Internacional, bem como o conhecimento dos pesqueiros e das gentes do mar e, sobretudo, das práticas ilícitas a mitigar.
          Concomitantemente, a par das acções de fiscalização em colaboração com outras autoridades, são lhe atribuídas missões de busca e salvamento no mar (SAR) que, pelo seu carácter de socorro, se tornam empolgantes vivências que, infelizmente, nem sempre ocorrem com o habitual sucesso.


          No mar decorrem ainda, a bordo de navios especializados, as tarefas de Hidrografia e de Oceanografia que, como a assistência aos Faróis, se desenvolvem em terra, na aturada preparação ou actualização de cartas, etc. ou na preservação da farolagem que internacionalmente assumimos ser da nossa responsabilidade.
          Ainda na área da Autoridade Marítima Nacional, no Continente e nas Regiões Autónomas, está implantada uma organização costeira hierarquizada em que as Capitanias dos Portos exercem num aturado exercício de prevenção, visando o cumprimento da legislação bem como de assistência às gentes do mar e aos que o usufruem, a que está associado o Instituto de Socorros a Náufragos.
          A poluição marítima que assola as costas, é outra actividade que, como todas as outras, competirá aos jovens oriundos da Escola Naval, um dia, combater. Estas e muitas outras em domínios mais especializados que não citámos (v.g. em situações de catástrofe humana ou natural) permitem aceder aos mais destacados postos ou cargos da carreira naval.
          Claro que daqueles jovens se irá requerer, ao longo da vida, uma grande disponibilidade para se acorrer às diferentes necessidades da Armada em todos aqueles teatros de acção, implicando vastíssimas áreas, que em extremo, não nos iludamos, poderão ser de guerra.
          As carreiras só terão de comum os postos da hierarquia militar pois o seu percurso, para além das experiências de mar, pode ser, em terra, muito variado, mais ou menos padronizado, mas raramente iguais o que, em si, é um aliciante.
           No nosso território, numa sociedade em que mais que o “ser”, prevalece o “ter” e, mais ainda, o “parecer”, importa sobretudo, diferentemente dos civis que apenas se representam a si mesmos, que os oficiais dêem de si uma imagem consentânea com o estatuto a que têm direito, pelo seu comportamento social onde quer que estejam, ombreando pelo seu estilo pessoal com as classes profissionais que melhor cuidam da sua imagem e sabendo desembaraçadamente conviver, desde a Escola Naval, com os seus pares universitários, donde sairão as elites, em todas as oportunidades em que concorram, marcando, desde cadetes, a sua posição no contexto do ramo das Forças Armadas que representam.

Ainda lhe parece que a Escola Naval possa não ser uma escola exigente?

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