27.ª “HISTÓRIA À VISTA”, da autoria do 1.º Comandante do Navio de Apoio “NRP São Miguel” - CMG REF Oliveira e Costa (1985-1988), versando sobre os preparativos e início da viagem do NRP "São Miguel" para Moçambique.
MEMÓRIA N.º 9: 11 cms. …?
31AGO87. Com a oferta embarcada em Lisboa, resposta ao apelo internacional do Governo Moçambicano, atestados e lastrados, largámos para uma viagem que seria como que a nossa manifestação musical própria! Já tínhamos navegado, na costa do Continente, no Norte e no Sul. Já tínhamos ido à Madeira. Agora, numa viagem de cerca de 4 meses, íamos a Moçambique onde escalaríamos Maputo, Beira, Nacala e diferentes locais, na costa moçambicana, a designar pelo Governo de Moçambique após a chegada.
Nesta viagem faríamos escala nos Açores (Horta), América do Norte (New Jersey), Brasil (Fortaleza), África do Sul (Durban e Cape Town), São Tomé e Príncipe (Ana Chaves) e Cabo Verde (S. Vicente) regressando a Lisboa 04 meses depois! Era uma viagem desejada do fundo do coração e também merecida, digo eu… Um ano antes tínhamos feito dois lançamentos ao mar, com sucesso, de cerca de mil e oitocentas toneladas de munições obsoletas e sentenciadas da Marinha, do Exército, e de outras entidades, em condições inimagináveis e de grande risco.
Pelo menos foi esse o entendimento do Director do Depósito de Munições NATO de Lisboa, bem como de alguém responsável pelo Parque da GALP, Depósitos de Gás, junto do Cais do Portinho da Costa e ainda de um grupo de Rotários, que me convidaram, para fazer uma exposição sobre o tipo do material em carregamento, riscos e medidas de segurança tomadas, por intermédio de um médico veterinário, residente em Santo António da Caparica, a que, obviamente, me escusei o mais delicadamente que me foi possível!
Terminado o lançamento ao mar não me foi permitido louvar a guarnição pois poderia ser entendida tal manifestação como de um auto-elogio ao comando do navio… finalmente foi autorizado conceder, à guarnição, três dias de licença por favor e sem quaisquer referências ao pessoal do Exército que embarcara, como auxiliar, nessas missões!
Hoje o destino, que ninguém pode prever ou controlar, “acertava” as nossas contas proporcionando-nos uma viagem de sonho! Uma viagem que desejávamos, levando ajuda a um povo irmão sofrido, muito sofrido, e, individualmente, cada um sentia-se orgulhoso por ter sido um dos eleitos para levar um forte, caloroso, saudoso e apertado abraço ratificando, de forma tão singela, uma amizade e maneira de ser de há já 500 longos anos!
Aproveitando as escalas programadas levámos além do auxílio de emergência, equipamentos para a Estação Rádio Naval da Horta, material da UCLA e contentores da ADRA para alguns dos PALOPs por onde o NRP “São Miguel” iria passar. O carregamento, na Doca da Marinha, foi iniciado a 14AGO87 e, a 31AGO, uma segunda-feira, largámos pelas 1630. A nossa intensa vida a bordo tinha-nos transformado, ao longo de dois anos, de desajeitados Marinheiros da Marinha Mercante em profissionais especializados!
Com uma semana de carga, quando tudo parecia correr sobre rodas, caiu um soldado à água que de imediato foi resgatado por um Mar. FZ. O transporte do material até ao cais e o trabalho braçal da sua estiva a bordo, era feito por pessoal do Exército. Nesse mesmo dia, o Ten. Cor. Miquelina Simões, que controlava o transporte e descarga do material, vindo da Manutenção Militar em atrelados de 14 toneladas preenchendo de forma curiosa a Doca da Marinha, sofreu um enfarte.
Enquanto aguardava a ambulância foi acompanhado, na “Sala de Estar dos Oficiais” da Doca, pelo Serviço de Saúde do navio. Infelizmente viemos a saber que não conseguira recuperar vindo a falecer mais tarde. Foi doloroso pois tínhamos no Ten. Cor. um amigo profundamente empenhado que se impusera pela sua eficiência, dinamismo e boa disposição. Já perto da data da saída do navio tivemos o prazer da companhia ao almoço, na câmara do NRP “São Miguel”, dos ilustres convidados Pedro Solnado, Raul Solnado, Fernando Pessa e Dr. Marcus de Noronha.
Depois do almoço, que mais não foi do que um quente, encantador e inesquecível convívio, fiz de cicerone na visita à Caravela “Boa Esperança”, que se encontrava atracada do lado interior da Doca da Marinha, tendo-se juntado a nós Maria Barroso. No dia da saída embarcou o Asp. Antas Torre, filho do Adido de Defesa em Maputo. Na Horta, Ilha do Faial, Açores, faríamos frescos e aguada. Seriam descarregados os equipamentos embarcados com destino à Estação Rádio Naval da Horta, seguindo depois para New Jersey onde estava previsto o embarque de 2.500 toneladas, da Ordem Soberana de Malta, sendo 2200 oferta principal da Ordem e 300 toneladas oferta particular de um Cavaleiro da Ordem.
A execução da Missão era original. Do auxílio, dirigido a Moçambique, parte seria desembarcado nos Portos principais de Maputo, Beira e Nacala e, o restante, ao longo da costa moçambicana utilizando-se quatro viaturas anfíbias, dos FZ’s, os LARC’s. Viaturas de “caixa aberta” com a capacidade de transportar 5 toneladas cada. Seriam arriadas ao mar junto à costa, próximo do local indicado pelo Governo Moçambicano.
Carregada a viatura seguiria, pelos seus meios, até ao local da entrega do material permitindo a distribuição directamente às populações que, por motivo da guerra, se tinham refugiado junto ao mar, ao longo da costa, em locais que lhe proporcionavam segurança, algum bem-estar e subsistência mas isolados e sem acessos rodoviários. Uma decisão merecedora dos maiores encómios pela justiça e atenção que iria proporcionar àquelas populações desalojadas.
A Marinha desde o início sempre manifestou o seu empenho no sucesso desta operação. Estudos, contactos e levantamentos foram de facto exaustivos. Um excelente trabalho da 3ª DIV do Estado-Maior através do Cte. Rodrigues Gaspar que me obrigo aqui a indicar o seu nome, pelo merecimento, amizade e dedicação que devotou à missão numa atenção e cuidado a que não estávamos habituados.
Os LARC’s vieram, navegando, para a Doca, sendo içados para bordo, através dos paus de carga, e colocados no convés onde ficaram “à justa”, por ante a vante de meia-nau, depois de cortados a maçarico, pela “máquina”, alguns olhais na amurada onde amarravam os contentores quando estivados sobre os porões. O dia da partida começou soalheiro e a boa disposição era uma constante em todos.
O ambiente a bordo era de festa e os elementos da guarnição foram convidados a trazerem as mulheres e os filhos para o almoço desse dia. Era uma comemoração inédita no “São Miguel” onde se juntaram, as duas famílias a naval e a civil. As duas mereciam-no! Tanto trabalho, preocupações, cuidados, arrelias, desgostos, sonhos, ansiedades e alegrias tudo se misturava e todos mostravam o orgulho, respeito e agradecimento!
O tempo não parou e o nosso lado civil desembarcou para, no cais da Doca, se despedir. O mestre apitou à faina e com os militares formados a bordo e os familiares juntos no cais acenamos um último adeus! Amarração ao singelo, cabos dentro, um último beijo enviado, para quem no cais teimava em nos seguir, máquina a vante. Comovidos e de alma cheia demandámos a barra. A viagem tinha começado e o navio, navegando, com alguma carga, apresentava um comportamento ardente, clamando por uma maior atenção ao leme.
O balanço era lento, não chegava a adormecer mas era lento de mais para o “meu gosto” e, algumas vezes, tive a percepção de balanços “mal acabados”. O navio não “casava” bem com o tempo que se fazia sentir! Tive a noção de que havia um “desalinhamento” com o mar! Fiz de novo as contas em função das cargas embarcadas e a altura metacêntrica era de 11 (onze) cms! Era pouco mas ficaria melhor quando embarcasse a carga nos Estados Unidos.
Uma semana depois de ter sido colocado no navio recebemos a visita de um dos últimos Comandantes do N.M. “Cabo Verde”, a convite do Imediato. Foram momentos encantadores onde o amor à vida de Marinha e ao mar estiveram sempre presentes. Notei, e guardei para mim, quanto o “Cabo Verde” representava para aquele Capitão da Marinha Mercante! Ainda não conhecia o “meu” navio mas, hoje… como eu o compreendo!
Ao longo daquela visita foi-nos transmitindo experiências, cuidados passados e a vida vivida a bordo! O tempo passara sem darmos por isso! Um encontro de profissionais com todo o tempo do mundo como se se tratasse de uma passagem de serviço a quem chega trazendo somente boa vontade e muito empenho… mas irmanados no mesmo amor pelo mar. Despedimo-nos com a certeza do dever cumprido de quem saiu e... da responsabilidade para quem chegara!
De tudo o que foi dito e referido, nessa visita, guardei dois assuntos que me despertaram a atenção pela ênfase com que nos descreveu. A Altura Metacêntrica (AM) “demasiado” pequena, o que levava a maioria dos capitães a não desejarem embarcar no “Cabo Verde”, e os aparelhos de ar condiccionado que estavam sempre numa lástima provocando muitas vezes o “desespero” no pessoal embarcado dizendo, à laia de justificação, que o navio fora construído para navegar sempre carregado e em climas mais frescos!
Agora navegando para os Açores recordei o tema da AM! Em reunião com o Imediato e com o Engenheiro foi decidido que na Horta mudariamos os LARC’s para o porão, verificaríamos o lastro e meteríamos o gasóleo possível. Aproveitei para reler alguns capítulos do livro sobre estabilidade, argentino, que me fora oferecido pelos Peritos Arqueadores Moura e Torcato, da Inspecção Geral de Navios, cuja profunda amizade vinha do meu tempo de Capitão de Porto da Horta. Chegámos à Horta perto das 2100. Noite de luar e, dentro do Porto, a água estava espelhada. Não vou contar o que senti ao entrar e manobrar o NRP “São Miguel” naquele porto onde vivi durante 5 anos… Um dia, se for capaz, ainda vou contar sobre essa comissão de encanto!
A faina de rearrumação da carga e dos LARC’s teria de ficar para o dia seguinte pelo que foi feita uma msg para Lisboa informando da demora na saída que estava prevista para a manhã seguinte. Na resposta era informado que a alteração proposta não era aceite e reconfirmava a hora de saída como previsto! Problemas… Levávamos dois anos de vida do navio e as beneficiações das condições de habitabilidade, por nós solicitadas, desde finais de 85 nunca foram efectuadas.
Assim o Comando tentava cumprir escrupulosamente as datas de saída mas, nas chegadas, entrava logo que possível, não sacrificando mais o pessoal, o que nunca foi bem entendido superiormente! Agora tudo parecia indicar que a alteração proposta se encaixava perfeitamente nesse comportamento “intolerável” do navio. Respondi ser aconselhável diferir a saída pois necessitava de movimentar carga para melhorar a estabilidade do navio.
Na volta estava a ser chamado à Cabine pois tinha o Estado-Maior em linha! Do outro lado da linha um Oficial General no seu estilo habitual de diálogo bem-humorado e chistoso queria saber das razões da minha “preocupação”! Respondi que era um problema com a AM e que contava poder sair pelas 1600, resposta que não foi bem acolhida! Sem mais diálogo disse para voltar a contactar, pela fonia, às 1400. Voltei a repetir das razões que me levaram a fazer o arranjo da carga reforçando que estava com 11 cms de AM.
Conforme eu ia falando, embora as comunicações estivessem boas, o Alm., ia repetindo com aquele seu ar de mofa, o que eu lhe ia dizendo! Pareceu-me perceber, no ruído de fundo, alguém dizer:
- “deixe-o… deixe-o!”.
Fui então autorizado a sair logo tivesse terminado a faina. Com a mudança das viaturas anfibias para o porão, Paus arriados, lastrado o tanque 3C com água salgada e metido 70 Toneladas de gasóleo conseguimos passar de 11 cms de AM para 13! Mais tarde vim a saber que, o “sussurro” ouvido, pertencia ao Alm. Martins Guerreiro chamado para dar a sua opinião, perante a minha “intransigência”, e que ficara admirado com a informação sobre a situação do navio, tendo sugerido ser prudente autorizar o proposto pelo Comando do NRP “São Miguel”. E assim foi! Composta a carga e melhorada a AM largámos para W continuando a nossa viagem!