27/02/15

HISTÓRIA À VISTA - 37

          Retomando a rúbrica "História à vista", vou continuar a publicar artigos da autoria do VALM REF Adriano de Carvalho, redigidos em formato de Resenha Histórica do seu percurso profissional.
 
 
CAPÍTULO N.º II: "Bartolomeu Dias"

         A 09 de Agosto de 49, acabada que foi a especialização em Comunicações, embarquei e no Aviso de 1.ª classe “Bartolomeu Dias” onde servi cerca de 3 anos. Foi o navio onde me mantive mais tempo na Armada.
         O “B. Dias” encontrava-se na doca de Alcântara (estaleiros da antiga CUF) a terminar grandes fabricos de manutenção. Foi então nomeado comandante o CMG Negrão Neto (NN), que escolheu para Imediato o 2.º Comandante que tinha tido em V. Franca (Cap. Ten. Andrade e Silva).
         Embarcaram também pela mesma altura os 2.º Ten. Saturnino Monteiro (art.), Estácio dos Reis (elect.) e o Turibio de Abreu. (nav.). Registe-se que todos nós éramos oficiais muito novos, acabados de especializar, talvez porque os mais antigos não gostassem de servir com o comando escolhido.
         O Chefe de máquinas que nos antecedeu era o Eng. Coimbra. Foi mais tarde nomeado o Médico, Dr. Paz Pereira.
         A vida a bordo deste confortável navio, foi completamente estragada pela personalidade conturbada do Comandante. Não era estúpido, mas tinha falta de bom senso. Era muito dado a castigos por tudo e por nada e fazia pouco uso do sentido de responsabilidade. O pior de tudo no entanto, era sua completa negação para a manobra do navio nas suas atracações.
         Contava-se que nem sequer foi capaz de tirar a carta auto de condução militar que era válida para o país e que era passada pela unidade que comandava (Esc. de Mecânicos). Era sempre sugerido pelo Júri que praticasse mais um pouco…
         Dizia-se também que de outra vez enfiou o C. Torpedeiro que comandava, pelo gurupez da Sagres exclamando em voz alta: “eu pago tudo, eu pago tudo”. Claro que não pagou nada e aumentou a sua conta de “dívidas” à Fazenda Nacional…
         No entanto era bem visto pelas esferas superiores e é de reconhecer que apesar das suas deficiências, dedicou toda a sua vida a servir a Marinha.
         Todavia o Imediato que era um “yes man” também teve culpas no cartório. Basta dizer que quando entrava de licença e era substituído pelo Saturnino, a vida a bordo era muito mais sossegada. O segredo era não pôr inicialmente objecções às suas ideias extravagantes e no dia seguinte dizer-lhe com cuidado: “Sr. Comandante, estive a pensar sobre a sua ordem tal, e era de opinião que se reformulasse em alguns aspectos, etc". O homem então aceitava discutir e alterar as suas ideias.
         Isto foi ensinamento do Saturnino, crucial para se evitar muita chatice. Mas a vida no “B. Dias” não começou bem, visto que nos finais dos fabricos houve uma explosão nas frigoríficas (provocada por uma troca de garrafas de CO2 por Oxigénio), de que resultou 7 mortos, entre marujos e operários, um dos quais era o SubTen Eng. Taborda, dos meus tempos da EN. Tudo isto se deu quando o Comandante ficou viúvo e eu estava de licença, tendo-me apresentado logo que soube da ocorrência.
         Para não ser muito longo vou apenas referir-me às duas missões mais importantes que o navio desempenhou com o referido comando: Em Junho de 50 efectuaram-se as últimas manobras navais à portuguesa, ou seja antes de se aplicarem as normas NATO. De qualquer forma foram manobras de certa importância, pelo número de navios envolvidos.
         Além do “B. Dias”, entraram nas manobras três contra-torpedeiros, uma fragata, um submarino e dois patrulhas. As manobras realizaram-se entre a Madeira e Açores com descansos semanais no Funchal ou P. Delgada.
         O “B. Dias” era o navio-chefe e levava a bordo o Comodoro da F. Naval do Continente, CMG Ferraz, que tinha sido o Imediato do Carvalho Araújo no combate com o submarino alemão na 1.ª G. Guerra. Trazia como C. E. Maior o Cap. Ten. Castro e Silva e como ajudante o 2.º Ten. Limpo Serra.
         Quando passámos pela posição em que se tinha dado o combate com o submarino alemão, o Comodoro fez por intermédio do transmissor (TCS12) uma prelecção histórica para todos os navios de cerca de 10 minutos, sobre o que se tinha passado.
         Houve no entanto um Patrulha que não tinha boa recepção e que transmitiu no fim “say again”. Respondi “estas coisas não se repetem…”.
         O nosso Comandante NN (que tinha também alcunha de “nabiças” pois era semi-vegetariano, não aceitava facilmente ter a bordo quem mandasse mais do que ele e daí que as pegas com o Comodoro fossem constantes.
         Certa vez ao entrar no Funchal, o navio ia com excessivo andamento e o Comodoro já nervoso disse: “Oh Comandante não acha que vai depressa de mais?”. O NN perguntou-me: “acha Adriano?“ Respondi que sim e além de ter mudado o telégrafo para “devagar a vante”, fui avisando pelo telefone as Máquinas para se prepararem para marcha a ré a toda a força.
         O navio acabou por estacar a 6 metros das rochas do fundo do porto! Além disso estivemos várias vezes em risco de colisão durante as manobras, pois o NN enganava-se quase sempre nos cinemáticos. Nós, Oficiais, já há muito que tínhamos tomado a atitude de só darmos a nossa opinião quando ele já aflito pedia sugestões, aliás sempre tarde.  Noutras alturas tomava atitudes excessivamente realistas, tal como no exercício de abandonar o navio em Porto Santo, a que nem o cozinheiro de bordo escapou. Conclusão, estragou-se o almoço e as jangadas tiveram que ir para reparar no Arsenal.
         Mas a mais importante comissão desempenhada no meu tempo foi a volta de África, para instrução do curso de G. Marinhas “Pedro Alv. Cabral”, cujo chefe era o Dores Pinto e que incluía também o meu irmão.
         A viagem iniciou-se em Outubro de 50 e teve 5 meses de duração, com a extraordinária particularidade de termos tido sempre bom tempo. Tocámos os portos mais importantes das nossas possessões, incluindo S. João Baptista de Ajuda. Dobrámos o Cabo da Boa Esperança com mar espelhado, saímos pelo Canal do Suez e ainda escalámos Malta no Mediterrâneo.
         O ambiente a bordo que nunca foi bom, piorou com o embarque dos G. Marinhas. Para esta viagem embarcaram o 2.º Ten. Costa Santos (que substituiu o Turibio de Abreu) e o 1.º Ten. Vieira Coelho como Director de instrução dos G. Marinhas.
         Acabaram ambos por ser castigados, pois não tinham a nossa experiência de lidar com o NN. Fomos extraordinariamente bem recebidos em todos os portos onde tocámos, até porque na altura era Ministro do Ultramar o Alm. Sarmento Rodrigues.
         No Lobito onde o navio permaneceu 15 dias, teve lugar a visita às minas dos diamantes na Lunda e os Oficiais escolhidos fizeram greve à excursão, (devido ao mau ambiente) mas acabaram por ter ido com passagem de guia de marcha. Eu fazia parte deste grupo e ainda bem que fui obrigado, porque foi uma visita inesquecível.
         Andámos cerca de 1000 km de comboio e mais 600 de carro por estradas que se tornavam rios quando caiam grossas chuvadas.
         No entanto à chegada fomos alojados como príncipes. Eu e o Estácio ficámos numa moradia com criado que de manhã depois de nos servir um óptimo pequeno- almoço, apresentou-nos as nossas fardas brancas, lavadas e engomadas.
     Visitámos depois as diversas instalações e notava-se em tudo uma extraordinária organização. Por exemplo os carros de serviço eram todos da mesma marca e na garagem havia um grande armazém com todo o tipo de sobressalentes.
         Havia também um pequeno Hospital com muito bom aspecto, onde nos foi dado ver alguns indígenas que foram atacados por leões, nas proximidades.
         No departamento das minas exibiram a silhueta do nosso navio com diamantes estendidos numa mesa de ping-pong. Havia também um aparelho de raio X para examinar à saída os trabalhadores (de cor) que trabalhavam em turnos de 15 dias.
         Também fomos desafiados para um jogo de futebol e ofereceram-nos um baile de despedida, regado com champanhe francês, e as nossas mesas estavam gentilmente guarnecidas pelas senhoras locais (casadas) com lindos vestidos de baile.
    O Director das instalações era um engenheiro português que denunciava ser fora de série e certamente escolhido pelo Comandante Vilhena que comandava o negócio em Lisboa.
         No entanto o nosso NN escusou-se a participar na maioria das recepções oferecidas alegando o seu estado de viuvez. Das situações caricatas sucedidas nesta comissão, menciono as seguintes:
         Passados dois dias de largados de Lisboa, saiu do seu camarote e apareceu na câmara o Dr. Paz Pereira (um dos mais enjoados da nossa frota) que com ar desconfiado olhou para um e outro bordo e exclamou em voz alta: ”Afinal isto está uma excursão porreiríssima!”.
         A frase chegou ao ouvido do NN e daí sucedeu que nunca mais teve descanso, recebendo afazeres impostos por papelinhos do pequeno bloco de notas guarnecido com papel químico, onde registava as ordens dadas.
         Diga-se de passagem que várias vezes fizemos desaparecer o caderninho, o que deixava o nosso chefe desorientado. O certo é que uma das missões atribuídas ao Médico, foi a de fazer uma palestra aos G. Marinhas sobre o feito do nosso patrono, na dobragem do Cabo das Tormentas.
         A cerimónia decorreu na tolda, (em formatura) com a cidade à vista e mar de “patas” estanhado. Pensei cá para mim que nunca o “Mostrengo” fora tão enxovalhado, com tal prelecção proferida nas suas “ventas” pelo tipo mais enjoado de bordo…
         Visitámos depois Lourenço Marques onde permanecemos cerca de uma semana, decorreram várias cerimónias e fomos muito bem recebidos.
         Além de confraternizar por lá com alguns familiares, tive ainda o prazer de numa das recepções, encontrar um casal de Médicos que tinham sido meus condiscípulos no Liceu José Estêvão em Aveiro.
         Seguiu-se Inhambane e à entrada da barra entrou a bordo um “prático” de cor da Capitania local, a que o nosso NN “racisticamente“ não passou cartão. De facto se a tarde não estivesse tão ventosa, a manobra seria a de simples atracação a um molhe de cimento em T existente no interior do porto. Com a ventania, aconteceu a cena que apelidei de “Debandada” e que passo a descrever:
         Tocou à faina e ouviu-se pelo ETO a ordem: “Oh Imediato vamos atracar por bombordo.” O imediato ordenou os respectivos preparativos com cabos e defensas, mas os 10 minutos gastos, fizeram com que o vento o virasse o navio de 180º. Ordem - “Afinal Oh Imediato o navio quer atracar por estibordo.”.
         Entretanto uma banda tocava marchas militares no cais, à nossa espera. Mais 10 minutos a mudar a tralha e mais uma vez o vento mudou o navio de bordo. A cena repetiu-se por mais que uma hora, a banda já tocava com menos entusiasmo e de repente o “próprio navio se “chateou” com a demora e avançou de proa contra o cais.
         A banda quando viu a proa do navio avançar sobre eles, começou a desafinar e debandou (termo muito apropriado para a ocasião).
         O cais resistiu ao embate mas a nossa proa abriu uma grande boca. O Comandante como era seu hábito nas várias mossas que causava ao navio, chamou o Eng. Coimbra que desta vez declarou que a reparação da avaria estava fora das suas possibilidades.
         Aconselhou no entanto que se pedisse auxilio à oficina local dos caminhos-de-ferro que também se declarou incapaz, sugerindo-se no entanto que o rombo fosse tapado e soldado com folha-de-flandres. Foi o que se fez e depois de tudo pintadinho de cinzento a coisa ficou escapatória à vista, situação que durou até ao regresso a Lisboa. Não foi no entanto determinado a abertura de qualquer auto de ocorrência …
         Na Beira os G. Marinhas tinham um convite para visitar a Reserva Natural da Gorongoza, mas o nosso NN que estava zangado com os alunos recusou o convite, alegando que eles estavam cansados. Perderam uma visita de grande interesse e ainda por cima foram gozados pelas miúdas da terra.
         Os únicos portos estrangeiros que visitámos foi Mombaça e La Valeta (Malta) além de Alexandria, depois da saída do Canal do Suez, onde tivemos oportunidade de fazer uma excursão às pirâmides e ao Cairo (com dança do ventre em cabaret) tudo à nossa custa, claro.
         Recordo que em quase todos os locais onde estivemos, éramos desafiados para um jogo de futebol e não me lembro de termos perdido algum. Tínhamos uma selecção de elementos da guarnição e do curso de G. Marinhas em que eu e o meu irmão fazíamos parte, mas o elemento-chave da equipa era o Eng. Nabais, dotado de grande habilidade que aproveitava para fazer golos. Só que tínhamos poucas hipóteses de treino.
         Mesmo assim, desafiados pela selecção dos navios ingleses (cruzadores e destroyers) que se encontravam em Malta, ganhámos por 4/0. Ainda apareceu a bordo um oficial inglês para pedir desforra no dia seguinte e recusámos por falta de tempo para recuperarmos.
         Mas o dia da chegada a Malta coincidiu com o falecimento do Marechal Carmona e os navios de guerra ingleses estavam todos de bandeira a meia haste.
         Nós já sabíamos da notícia pela rádio mas o NN exigia comunicação oficial para fazer o mesmo. Veio então a bordo um Oficial inglês comunicar oficialmente o sucedido, mas ele só arreou a bandeira depois do almoço que ofereceu ao nosso cônsul….
         Finalmente chegámos a Lisboa e a casa. Já agora abro um parêntesis para contar que a minha filha mais velha que tinha nascido pouco tempo antes do início da viagem, recebeu-me muito bem, brincou comigo, mas já mais tarde perguntou à mãe: “Oh mãe, quando é que este homem se vai embora?” (percalços da vida de Marinha).
         Passadas umas semanas depois da chegada, tivemos o prazer de ver o nosso NN substituído pelo CMG Oliveira Lima que estava à muito tempo na “prateleira”, porque comandando uma força de Marinha não ligou nenhuma à passagem de uma formação da Legião Portuguesa.
          Trouxe como Imediato o Comandante Aragão, de forma que o navio passou a ter um “importante trio “ de Oficiais republicanos, contando com o Eng. Coimbra.
         O ambiente a bordo mudou completamente e a guarnição viu com agrado que o novo Comandante descia à Câmara de Oficiais para jogar bridge.  Certo dia chegou muito satisfeito dizendo a mim e ao Estácio que já tínhamos marcada uma comissão de viagem de instrução de Cadetes, aos Açores e Ceuta.
         Perguntámos-lhe então se ele sabia que o navio estava sem proa. Disse que o seu antecessor (com quem estava de relações cortadas desde o tempo de 2.º Ten.) apenas lhe tinha passado a chave da secretária. Lá se conseguiu uma entrada de emergência nos estaleiros do Arsenal do Alfeite, onde se reparou a avaria a tempo de iniciar a viagem.
         Lembro-me que em Ceuta (era na altura uma praça forte espanhola), fomos recebidos pelo General Comandante da Legião Espanhola (Queipo de Lhano) que num beberete brindou por Franco e Salazar. O Nosso Comandante respondeu com um brinde por Portugal e Espanha. Perdeu assim a condecoração que lhe estava preparada…
         Mas a comissão que mais me emocionou foi a da nossa ida a Brest para trazer para cá o féretro da Rainha D.ª. Amélia. Embarcou como representante da família real o Visconde de Asseca (parente do capelão que tinha tido na Escola Naval). O nosso Comandante apesar de republicano, exigiu que o Visconde fosse tratado a bordo com a maior cortesia, ficando instalado na camarinha do Comandante a navegar.
         As autoridades francesas tomaram o caso muito a sério e a cerimónia do embarque foi alvo de importantes honras militares (um batalhão de Marinha formado no cais e 21 tiros durante o içar do féretro, com apresentar armas).
         Diga-se de passagem que Salazar já tinha convidado a Rainha a visitar Portugal em 1945 (17 Maio a 30 de Junho) que a D. Amélia aceitou de bom grado, porque ela amava Portugal, apesar de lhe terem assassinado o marido e o filho mais velho na carruagem onde seguiam.
         Já agora conto que em Brest na noite anterior ao dia da cerimónia, calhou que num bar local elegante onde entrámos, fosse-mos (eu mais 2 camaradas) convidados gentilmente por umas senhoras a sentarmo-nos à mesa delas. A conversa teve por base a nossa rainha e às tantas disseram que nós tínhamos sido uns selvagens, ao matarmos-lhe o marido e o filho à queima-roupa na carruagem onde seguia toda a família real.
         Respondi que os compatriotas delas fizeram muito pior ao Luís XVI e à Maria Antonieta que foram à guilhotina na praça pública. Ficaram caladas.
         À chegada a Lisboa tínhamos 3 rebocadores à nossa espera para nos ajudarem a atracar ao cais SSE onde se encontrava o Salazar, sentado em bancada com os seus ministros, para assistirem ao desembarque do féretro e seguinte cerimonial.
         O nosso Comandante dispensou os rebocadores e atracou em manobra limpa no espaço que nos estava reservado. Para terminar apenas direi que passado uma semana, veio a bordo o Visconde de Asseca agradecer a forma como tinha sido tratado a bordo e ofereceu ao navio um quadro pintado pelo rei D. Carlos sobre uma fragata no Tejo. Mas eu já tinha 3 anos de navio e a minha saída era inevitável.
         O Com. O. Lima não só me louvou como me apresentou a oferta de um curso de electrónica nos E.U.A, provavelmente obtido em conversa com o Com. Ramos Pereira, que eu aceitei. A minha comissão no “B. Dias terminou em 7 JUL de 52.
         Foram entretanto nomeados mais três Oficiais (A. Leitão, H. Leitão e Wagner) para o referido curso em Great Lakes, perto de Chicago. Para contradizer a estatística só eu que era o mais velho, ainda por cá ando.
         O António Leitão ficou em n.º 1 do curso de cerca de 40 Oficiais (metade americanos e outra metade internacional). Eu e o A. Leitão tivemos a classificação de “out-standing”.
     Por isso só voltámos os dois da América em finais de Outubro de 53, pois estivemos mais 3 meses à espera de atender um estágio para o qual tínhamos sido nomeados, na fábrica da “Federal” que tinha vendido à nossa Marinha radiogoniómetros (DAK3) e instalado a linha telefónica da Marinha entre Lisboa e o Alfeite.
         Ficámos adidos às autoridades Navais Americanas em N. York, à espera do tal estágio, mas não fomos deixados parados. Recebemos guias para várias Bases Navais onde nos era dado assistir a exercícios da Marinha Americana. Estivemos assim em muitas cidades portuárias, pelo que ficámos a conhecer mais América do que a maioria dos naturais.
         O tal estágio durou 2 semanas sob a assistência de um excelente engenheiro de origem Judaica, com quem ficámos amigos. Achou que os nossos conhecimentos de electrónica estava fresco e fez-se o estágio em metade do tempo previsto. Depois confraternizou connosco e levou-nos a várias exposições ligadas a assuntos electrónicos, incluindo matéria de alta-fidelidade que estava em começo na altura.
         Tratei entretanto do regresso a Lisboa num paquete de luxo italiano, mas não me foi dado esse prazer por ter recebido ordens de Lisboa para me apresentar com urgência. Vim então de avião e na Superintendência passaram-me guia para a Escola de Mecânicos, onde afinal não havia urgência nenhuma por se estar ainda em férias.
         Aproveitei para entrar de licença, mas perdi estupidamente a viagem de paquete. Acrescento que nunca a Marinha teve qualquer proveito desse estágio porque nunca tal nos foi pedido.
         Em V. Franca fui instrutor de electrónica e fundei o respectivo curso na Armada sob a égide e apoio do Comandante C. Alm. Moreira.

12/02/15

ARTE MILITAR NAVAL - 07

          Regressando à resenha "Arte Militar Naval", escolhi para este artigo sobre os desenhos manuscritos de Luís Filipe Silva, os veteranos Navios-Patrulha da classe "Cacine", navios de construção nacional em que centenas de militares da Marinha Portuguesa  serviram e tão bem conhecem, assim como muitos homens do Mar.
          46 anos depois do primeiro a entrar ao serviço (dando nome a classe) e, uma vez que se aproxima o abate ao efectivo da Armada dos três restantes navios da classe, seria de equacionar o projecto do GAMMA - Grupo de Amigos do Museu de Marinha que visa musealizar um exemplar.  










Configuração original dos Navios-Patrulha da classe "Cacine" (NRP "Cacine" na imagem)











Configuração final dos Navios-Patrulha da classe "Cacine" (NRP "Save" na imagem)

Artigo sobre NAVIOS-PATRULHA DA CLASSE "CACINE":
http://barcoavista.blogspot.pt/2009/06/navios-patrulha-da-classe-cacine.html

03/02/15

O HOVERCRAFT DA MARINHA PORTUGUESA

          Os hovercrafts, também conhecidos como veículos de colchão de ar ou ACV, nas versões civis são utilizados essencialmente para transporte de passageiros e viaturas, nas versões militares para transporte de tropas, viaturas, patrulha, logística e desembarque.
          Apesar de ser um aparelho anfíbio, é mais utilizado na água, pese embora seja capaz de operar sobre terra, lama, areia, gelo, pântano, lodo, bancos de areia, deserto, neve, águas costeiras, rios e lagos.
          Deslizam sobre o terreno ou flutuam sobre a água, sustentados num colchão de ar feito de borracha, designado popularmente por “saia” que lhe permite que se desloque quase em suspensão sobre a água e contra a corrente sem perder velocidade, característica que faz com que seja mais rápido que maioria dos navios, não necessitando nem de tanta potência ou combustível, em virtude da água não oferecer resistência e não ser practicamente afectado pelo movimento das ondas.


















Hovercat a deslizar sobre lama e lodo

          Tipicamente, os hovercrafts têm 02 ou mais motores separados, um dos motores designado de sustentação, serve para accionar o levantamento do aparelho ao absorver ar atmosférico a alta pressão para o interior da “saia”, por recurso a um ventilador (ou rotor) de elevação centrífuga.
          O outro motor que, por regra funciona a uma rotação mais elevada, proporciona a força propulsora para deslocação e direcção desejada, sendo que a direcção é determinada pelo uso de lemes verticais para controlo direcional, instalados por regra atrás da turbina.

          Em Outubro de 1965, Robin Parkhouse projectou e construiu em madeira um protótipo de hovercraft de 05 lugares, baptizando-o de “SCORPION”, sem apoio industrial. Subsequentemente desenvolveu um novo aparelho em Abril de 1967, o “MANX HOVERCAT” construído na Ilha de Man pela empresa Manx Hovercat Ltd.















Imagem do "SCORPION" na revista "flightglobal.com"

















Esquema do "MANX HOVERCRAFT" na revista "flightglobal.com"

          A empresa Hovermarine adquiriu no final do mesmo ano a sua patente, tendo o seu inventor continuado associado a empresa como consultor, posteriormente o aparelho teve as suas linhas externas redesenhadas, controlos melhorados e os seus motores foram substituídos antes de ser colocado para produção em série, dando origem ao “HOVERCAT MkII”.
          O “HOVERCAT MkII Multipurpose Amphibious Hovercraft”, era fabricado pela empresa Hovermarine Ltd, criada em 1965 e situada em Southampton, (actualmente Hovermarine Transport Ltd.), tratava-se de um hovercraft anfíbio leve e multiuso, muito versátil, de 05 lugares (01 conductor + 04 passageiros), combinando baixo custo de operação e facilidade de manutenção.













Publicidade da Hovermarine sobre o Hovercat

          A facilidade de manutenção advém de não requer mecânico especializado dado a maioria dos componentes são de fácil obtenção, tendo tal vantagem tido em linha de conta na sua projecção.
          Este modelo teve a particularidade de apenas 03 exemplares terem sido construídos totalmente entre 1968-1972, com os seguintes n.º de fabrico HC2-001, HC2-002 e o HC2-003.
           O HC2-001 foi usado inicialmente pela Hovermarine para promoção de vendas e demonstrações, posteriormente foi vendido a um particular britânico, esteve à venda no eBay e, actualmente encontra-se em Selsey - Reino Unido em recuperação para o “Hovercraft Museum” situado em Hampshire - Reino Unido.




















Imagem do Hovercat HC2-001 no eBay

          O exemplar HC2-003 antes de ser vendido, ardeu num incêndio ocorrido na fábrica em Fevereiro de 1969, onde se perdeu igualmente mais quatro em vários estágios de construção e os respectivos moldes.
          O n.º HC2-002, segundo a documentação que a Hovermarine e o “Hovercraft Museum” facultaram (a quem também se agradece), estava destinado ao serviço estatal “Inland Water Transport Authority” do Paquistão Oriental (actualmente Bangladesh), mas por motivo desconhecido desistiu da aquisição e tornou-se o Português.
          Como pequeno hovercraft, conseguia operar em climas extremos e a partir de instalações relativamente despreparadas para o receber, fosse em rios, lagos ou zonas costeiras com alterações de marés e áreas de navegação congestionada, devido a sua flutuabilidade hidrodinâmico. A título de exemplo, realizou os seus testes de fábrica, bem-sucedidos, em condições de clima frio na Escandinávia.

















Testes do Hovercat na Escandinávia

          Espaçoso, com bons campos de visão e dotado de excelente capacidade de manobra, especialmente em baixas velocidades, por combinação de lemes e uma entrada de ar montada à proa, apresentava características que cativavam o seu emprego para missões de carácter civil e militar.
          Segundo as brochuras publicitárias, é possível constatar que podia exercer funções de carácter civil, de autoridade policial e missões militares: Patrulha de rio, serviços aduaneiros, operações de guarda costeira, transporte VIP, missões SAR, ambulância anfíbia, trabalhos agrícola, táxi, correio, reconhecimento, apoio logístico com pods externos, embarcação de desembarque.
          No caso de exercer funções de ambulância anfíbia, podia receber equipamento básico de suporte de vida, os bancos traseiros eram removidos, sendo substituídos por macas sobrepostas e, se necessário para proporcionar maior capacidade de transporte de macas, podia ser equipado com mais duas nas laterais do convés, uma de cada bordo em pods externos.

























Macas sobrepostas no Hovercat versão ambulância anfíbia


















Pods externos equipados com macas num Hovercat versão ambulância anfíbia

          O casco era todo construído em fibra de vidro reforçado, material leve e robusto, durável e de fácil manutenção, sendo a sua estrutura de grande rigidez e a cabine internamente era forrada com material retardante ao fogo.
          A estrutura do casco era composta por uma montagem de 02 peças de fibra de vidro reforçada (cabine e convés) e 01 estrutura de liga de alumínio marítimo rebitada que, compreendia o conjunto de 02 lemes verticais e o suporte do motor de propulsão.
          As bordas externas do casco eram unidas ao colchão de ar (sendo este flexível e de fácil substituição das zonas desgastadas ou danificadas), por calhas horizontais aparafusadas que também eram utilizadas para suportar a armação superior da saia, sendo inseridas no casco inferior armações transversais e longitudinais.
          As secções do compartimento de flutuação é dividido por nervuras para localizar a perda de flutuabilidade em caso de danos, sendo que até 02 compartimentos podiam ser rompido sem que o aparelho incorresse em perigo em situação de “água aberta”.
          A caixa dianteira transversal situada entre a antepara da cabine e a proa permitia controlar o impulso lateral (por recurso à entrada de ar), os lemes posicionados atrás do motor de propulsão, facultavam a força necessária para controlo máximo do vórtice da hélice.
          Os 02 lemes eram aerodinamicamente equilibrados através de cabos de tracção, sendo usados em alta velocidade e operados por pedais, 02 alavancas de aceleração independentes situavam-se lado a lado numa consola entre os bancos dianteiros.
          Uma válvula de proa estava equipada para dar o controlo direccional de guinada a baixa velocidade, sendo operado por um braço basculante no painel de cabine, com uma conexão mecânica à válvula do propulsor.





















Hovercat em navegação, note-se a caixa dianteira transversal na proa.

          Equipamentos de controlo e instrumentos básicos de navegação montados na consola central incluíam: conta-rotações, medidor de combustível, medidor de temperatura de cada motor, compasso, anemómetro, interruptor de corte combustível, interruptor de lastro, sensor de fogo, sistema de ventilação e aquecimento.
          A Hélice era de madeira Hoffman com passo fixo (1,98m de diâmetro) e os dois motores do Hovercat MkII eram de automóveis, atingindo a velocidade máxima de 35 nós (64km/h) sobre a água, sem vento contrário:
- 01 Motor de sustentação que accionava o ventilador de elevação (Volkswagen 124A de 46cv a 3.600 rpm, 1.584cc com 4 cilindros, refrigerado a ar), com uma antepara laminada com uma camada de noramite e amianto à prova de fogo entre o motor e o ventilador;
- 01 Motor que fornecia potência de propulsão (Porsche 912 de 90cv a 5.800 rpm, 1.532cc com 4 cilindros, refrigerado a ar) coberto por uma capota de fibra de vidro reforçado, o ar de arrefecimento era introduzido através de um filtro “Knitmesh” que proteger o motor contra a entrada de água salgada.
          O tanque de combustível de alumínio (79 litros de gasolina de 97 octanas), montado sob o ventilador do motor centrífugo de sustentação, tinha uma válvula solenoide e uma antepara à prova de fogo.















Esquema da motorização do Hovercat

          Ao aparelho podia ser montados jerrycans externos, ou receber um tanque de combustível de maior dimensão, por forma a aumentar a autonomia, mas por inerência, diminuía a capacidade de carga. Um extintor portátil era montado num suporte na cabine permitindo canalizar a extinção de fogo no compartimento do motor de sustentação, 01 pequeno extintor adicional encontra-se dentro da cabine.
          Possuía um sistema de lastro longitudinal, com 02 tanques de água doce montados na proa e outro na popa, para permitir que a guarnição corrigida a variação das condições de carga, sendo a transferência feita por duas bombas de accionamento elétrico (uma para cada direcção 5L/min.).
          Tinha 01 bateria de 12 volts, 01 buzina, limpa-vidros (de uma Ford Transit), pára-brisas e óculo traseiro de vidro temperado, 02 portas com puxadores e fechaduras (de um Fiat 600) e borrachas vedantes (01 a bombordo e 01 a estibordo), os seus 02 bancos dianteiros eram individuais e reguláveis, atrás havia 01 banco traseiro de assento e encosto fixo, sendo todos de lona com revestimento à prova d'água.
          Em caso de necessidade, o banco traseiro podia ser removido com facilidade, por forma a toda a sua área acomodar carga, a título de exemplo podia transportar: 02 maca, 02 bidons de gasolina, armas, munições, mantimentos, etc.



















Armas, munições e outros equipamentos no interior do Hovercat

          Para segurança da guarnição e passageiros, disponha de fábrica 05 coletes salva-vidas, kit de primeiros-socorros, âncora e cabos de amarração guardados sob os assentos dos bancos, as áreas de convés normalmente utilizados como passadiços possuíam superfícies antiderrapantes e, se necessário para proporcionar maior capacidade de carga, podia ser apetrechado com duas capsulas nas laterais do convés, uma de cada bordo.
          Para navegação disponha de luzes de presença: 01 vermelha e 01 verde, e uma luz interior de cabine operada a partir do painel de controlo, adicionalmente a pedido do cliente, podia ser apetrechado de radio e radar de navegação.

          O exemplar Português foi adquirido directamente a fábrica em Southamth – Reino Unido, pelo então Oficial de Marinha a exercer funções de Adido Militar Naval da Marinha de Guerra Portuguesa na Embaixada de Londres, em 11 de Janeiro de 1971, pelo valor de 110,900£ libras (com uma hélice de reserva) e, desembarcado em Porto Amélia (Pemba) em Julho de 1972 por um navio-mercante que tinha por destino África do Sul, ficando à responsabilidade do Comando de Defesa Marítima dos Portos da localidade.

















Hovercat no Comando de Defesa Marítima dos Portos de Porto Amélia (Foto cedida pelo SAJ FZE Valter Tavares Raposeiro)

          Anteriormente, a empresa portuguesa representante da fábrica em Portugal (Quimia - Sociedade Técnica Química, Lda), forneceu informações complementares e formalizou um convite ao EMA, datando de 15 de Dezembro de 1970, para que 01 Oficial assistisse a demonstrações, experimentasse e conhecesse dois modelos da Hovermarine - o “HOVERCAT” e o “HM2”, sem encargos e com despesas suportadas pela empresa.
          Anuindo ao convite, é nomeado em Maio de 1972 pelo EMA através do Comando Naval de Moçambique, um Oficial Superior EMQ (na época Cten, actualmente Calm REF), então destacado no Comando de Defesa Marítima dos Portos de Porto Amélia e Chefe de Serviço de Assistência Oficinal, para deslocar-se ao Reino Unido, onde frequentou um estágio, ficou habilitado na prática de navegação do aparelho e redigiu um relatório.
          Como características próprias, possuía uma tonalidade cinza clara, uma escotilha rectangular no tejadilho, os seus bancos eram de napa verde, apresentando descrito no seu convés o n.º de octanas (gasolina de 98) que devia ter o combustível e, ficava sempre estacionado em terra junto do cais do Comando de Defesa Marítima dos Portos de Porto Amélia.
          De salientar que este aparelho, segundo a fábrica podia ser dotado de blindagem ligeira e receber um reparo para armamento (01 metralhadora-ligeira), sobre a escotilha superior, sendo a sua guarnição de 01 piloto e 01 proeiro. O exemplar Português foi somente apetrechado com o reparo para armamento à frente da escotilha superior (o objectivo era montar uma metralhadora-ligeira MG-42 mod.59 de 7,62mm).


















Versão militar do Hovercat equipado com metralhadora-pesada de 12,7mm

          A sua guarnição operava por rotação, tendo recebido formação ministrada pelo então Cten EMQ e um técnico inglês da Hovermarine no Comando de Defesa Marítimo dos Portos de Porto Amélia, de 31/07/1972 a 03/11/1972, sendo composta por 04 Praças FZ's: 02 Marinheiros (pilotos) e 02 Grumetes (proeiros), destacados para o efeito da CF n.º 9 em Comissão de Serviço em Moçambique entre 1972/1974.
          A 03 de Novembro de 1972, o Navio de Apoio Logístico NRP "Sam Brás", atribuído a título permanente ao Comando Naval de Moçambique durante a Guerra Colonial, transportou-o à vante junto a grua de proa, de Porto Amélia para Lourenço Marques (Maputo), sendo no início o destino era Beira / Zambeze, tendo ocorreu durante o transporte um pequeno acidente, devido a grua ter feito um rasgo na saía do aparelho, tendo sido o mesmo reparado a bordo.
          Nunca recebeu n.º de amura (matrícula), indicativo de chamada internacional ou endereço radiotelegráfico e, do que foi possível apurar, foi meramente utilizado até 27/01/1973 ao largo das baías das cidades de Lourenço Marques e Porto Amélia, em demonstrações de capacidades anfíbias para Altos Comandos Militares e Autoridades Civis de Moçambique, sendo que se os seus resultados operacionais fossem considerados satisfatórios, visavam decidir a aquisição de mais exemplares.

















Hovercat no Comando de Defesa Marítima dos Portos de Porto Amélia, note-se a estrutura tubular para suporte do reparo de armamento (Foto cedida pelo SAJ FZE Valter Tavares Raposeiro)

          Posteriormente, por vezes, esporadicamente, foi aproveitado como meio de transporte pelo então Almirante Comandante Naval de Moçambique para realizar funções inspectivas a Unidades subordinadas, quando se encontrava no Comando Naval de Moçambique Recuado (Lourenço Marques) ou quando se deslocava ao Comando Naval Avançado sediado em Nampula (a 200km do mar), sendo que utilizava o aparelho em parte do trajecto até ao Porto de Nacala.
          Durante a Guerra Colonial, no TO de Moçambique os rios de maior importância militar eram o Rovuma e o Zambeze, este último era o 4.º maior rio em África e um dos maiores rios da África Austral.
          Em 1969 foi iniciada no Rio Zambeze a construção da Barragem de Cabora Bassa - Província de Tete, com o desiderato de fornecer energia elétrica em Moçambique, originando um grande albufeira (lago artificial).
          Por inerência tal empreendimento transformou-se num objectivo militar da FRELIMO, sendo quer a barragem quer o seu lago artificial passaram a ser guarnecidos militarmente pela Marinha de Guerra Portuguesa, ramo das FA’s que até 1972 só disponha de um DFE na cidade de Tete e de uma pequena Unidade de FZ’s no Zumbo.
          Deste modo, em 1972 tendo em linha de conta os fracos recursos navais, foi superiormente determinado pelo Comando Naval de Moçambique, a criação do Comando da Defesa Marítima dos Portos do Zambeze (Portaria n.º 210/72 de 17 de Abril), encarregue de negar as vias fluviais utilizadas para infiltrações pela Frelimo e, permitir às FA’s portuguesas utilizar essas vias para transporte de tropas e abastecimentos, em detrimento das rodoviárias, evitando-se desta forma minas e emboscadas.
          A compra destes aparelhos tinha por desiderato substituir ou apenas constituir um complemento à utilização de botes pneumáticos Zebro III, passando a ser empregue pelos Fuzileiros em operações de patrulha, reabastecimento e assalto a objectivos nos Rios Zambeze e Rovuma, dado que estes botes sofriam com frequência grande desgaste das hélices dos motores, devido aos baixios, detritos de madeira e fundos rochosos; acrescido que não ficavam limitados a orla ribeirinha por possuir capacidade para penetrar em profundidade em terra.

















SAJ FZE Valter Tavares Raposeiro, então Marinheiro FZE piloto do Hovercat nos comando do aparelho (Foto cedida pelo SAJ FZE Valter Tavares Raposeiro)

          Assim, a aquisição de Hovercraft’s fazia parte de um “Plano de Segurança” que, advogava a sua utilização a nível de Secções em águas interiores, em complemento de botes pneumáticos, por parte de Fuzileiros destacados nas Bases de Mutarara e Chinde.
          Além da sua velocidade, autonomia e capacidade de transporte, apresentavam a vantagem de facilmente transpor lodo, solo argiloso, gradiente acentuado das superfícies, navegar independentemente da intensidade da corrente e, caso necessário operavam em terra e procederiam à rápida evacuação de baixas.
          Não obstante, atendendo ao facto de não ser dotado de blindagem, nem nunca ter sido apetrechado com uma metralhadora-ligeira, mas principalmente por os seus motores (propulsão e sustentação) produzirem muito barulho e, comprometerem as operações (estava-se numa guerra de guerrilha), determinou-se superiormente que nunca fosse destacado operacionalmente no TO, nomeadamente por motivos de segurança da sua guarnição e passageiros. Tais inconvenientes já se encontravam patentes no relatório de estágio do Cten EMQ quando esteve no Reino Unido.
          Ao largo de Porto Amélia, chegou a sofrer uma avaria grave no motor Porsche de propulsão, fruto de funcionar sempre, por defeito, à máxima rotação, tendo sido trocado em Moçambique por um técnico que se deslocou para o efeito e, cujas despesas e novo motor ficaram a cargo da Hovermarine.

















Motor de propulsão Porsche 912 de 90cv do Hovercat (Foto cedida pelo SAJ FZE Valter Tavares Raposeiro)

          Após regresso a Portugal (pese embora se desconheça uma data correcta, presume-se que ocorreu ainda em finais de 1973, ou em última instância findo o conflito colonial), foi enviado para o Depósito de Inúteis da Direcção do Serviço de Abastecimentos da Marinha, sendo pouco depois abatido ao efectivo da Armada.
          Foi posteriormente adquirido em leilão por particulares que o usaram para lazer, passeios turísticos em Tróia e ocasionalmente para serviços de emergência médica na zona balnear da localidade.
          Pouco mais tarde, foi obtido pelo grupo de empresas Torralta, tendo para o efeito sido pintado com as cores do grupo (laranja e branco) e afecto a “Hotelcar”, sendo utilizado para transportar turistas VIP’s na travessia do Estuário do Sado entre Setúbal e Tróia. Pretendia-se inclusivo utilizar no futuro "Club Hotel de Tróia", hoje "Design Hotel".
          O seu actual proprietário, empresário de Setúbal – Sr. Pedro Nunes adquiriu em 2011 num ferro velho situado no Casal do Marco - Seixal, perto do Rio Sul Shopping, com o intuito de o recuperar, encontrando-se o aparelho em sua posse, sobre o telhado dum prédio urbano na Rua Clube Naval em Setúbal.














Hovercat no ferro velho do Casal do Marco



















Hovercat na Rua Clube Naval em Setúbal

          Apesar de nunca ter participado operacionalmente em operações de combate (somente era guarnecido por Fuzileiros), a par da sua actividade na posse de civis, não deixa de ter o seu devido valor histórico, como 2.º exemplar do seu modelo (HC2-002) e, por usufruir da primazia de ter sido a Unidade Naval singular do seu tipo - hovercraft - que a Marinha de Guerra Portuguesa possuiu.

           A título de curiosidade, é de destacar que:
- Foi igualmente a Hovermarine que fabricou os 04 hovercraft’s do modelo HM.2 MkIII Passenger Sidewall Hovercraft (com propulsão de hydrofoils): "Soltroia", "Torralta", "Troiamar" e "Troiano" da Sociedade Turística Ponta do Adoxe Sarl (grupo de empresas Torralta), que efectuavam durante a década de 70 e 80 do século passado, travessias no Estuário do Sado entre Setúbal, Sesimbra e Tróia.
















O "Torralta" a navegar no Estuário do Sado

- Algumas empresas construtoras navais estrangeiras, tendo tido conhecimento do interesse da Marinha Portuguesa em Hovercraft’s, apresentaram pela mesma época folhetos e catálogos publicitários dos seus produtos, incluindo unidades navais ainda protótipos de hidrofoil’s:
• Protótipo do Hidrofoil Lança-mísseis classe "Pegasus", da empresa norte-americana Boieng, com 01 peça Otomelara de 76mm e 08 mísseis anti-navio Harpoon;
• Hydrofoil Lança-mísseis classe "Sparviero" da empresa italiana Alinavi, com 01 peça Otomelara de 76mm e 02 mísseis anti-navio otomat Mk2;
• Hovercraft tipo AACV Winchester “SRN-5” e “SRN-6”, mais a sua versão militar “BH-7 Wellington” da empresa britânica Saunders-Roe;
• Hovercraft “Hoverhawk” da empresa britânica Hover-air Limited;
• Hovercraft “CC7 Cushioncraft” da empresa britânica British Hovercraft Corporation.

Principais características do HOVERCAT MkII:
- Dimensões: 8.55 x 3.92m x 2.62 metros (comprimento, largura, altura);
- Profundidade do colchão de ar: 0,61cm;
- Peso: 2,500 kg;
- Velocidade máxima: 35 nós;
- Autonomia: 03 horas;
- Combustível: 79 litros (Gasolina);
- Carga máxima: 05 pessoas ou 327kg;
- Guarnição: 02 militares.



















Desenho técnico legendado do Hovercat