28/08/12

"HISTÓRIAS À VISTA" - 13

          13.ª “HISTÓRIA À VISTA”, da autoria do CMG REF Oliveira e Costa, 1.º Oficial a exercer o Comando do “NRP São Miguel” (1985-1988), versando as suas memórias (ao todo 15) de momentos vividos a bordo, durante a sua comissão de serviço.

MEMÓRIA n.º 1: doce...

          «Ainda era o dia 13 de Março de 1986. Navegávamos para Sul a caminho do Porto de Portimão. Era a primeira saída do navio, “para o mar”, desde que “entrara” para a Marinha a 6SET85. O “abandonado N/M “CABO VERDE” transformara-se no orgulhoso N.R.P. “SÃO MIGUEL”. Navegava com uma guarnição heterogénea sem treinos ou exercícios. Eu tinha desembarcado havia já 19 longos anos, como oficial de guarnição, e não tinha o Curso de Comandante.
          Ainda éramos proscritos perante o Estado-maior e Superintendências, que não aceitaram desde o início a singular “aquisição” do navio pelo CEMA de então.
          Íamos abastecidos para oito dias. Foram fornecidos ao navio gasóleo, nafta, água doce e géneros alimentícios. Tudo o resto como luvas de cabedal, capotes, tintas, papel higiénico, lanterna, binóculos, defensas e tudo aquilo que possam imaginar existia a bordo por empréstimo das Corvetas e Fragatas e cedidas, por amizade, e na situação de empréstimo ao Comandante, Oficiais e Sargentos que o solicitavam junto dos camaradas amigos e embarcados ou em terra.
          A anterior tripulação levou tudo o que pôde, desmantelou o quadro de manobra da máquina (espalhando as peças pelo porão), inviabilizando o navio navegar, pois aquela arrancava com gasoil e depois é que passava para nafta. Também fez desaparecer os manuais deixando somente alguns manuscritos em sueco, sem esquemas ou figuras.
          A guarnição era de 28 homens e só os Cabos e um Marinheiro sabiam fazer leme!
          O navio largara no dia 12 de Março mas problemas na máquina, logo em frente à Torre de Belém, aconselharam fundear no Dafundo e esperar a recuperação do material avariado, pelo Arsenal do Alfeite. Corrigidas as anomalias largámos meio da tarde do dia seguinte, dia 13 de Março.
          Já noite escura navegando na latitude de Sines ficou o navio sem energia. A única lanterna existente estava na ponte e, quando se procurou verificou-se que o Sr. Guarda-marinha a tinha levado para o camarote! Na mesma altura o Cabo encarregue das rondas de segurança ao navio gritava do Convés: “Água Aberta” enquanto esbaforido se dirigia, aos tropeções, para a ponte.
          O tempo parou! Era como se o navio tivesse passado a navegar à vela deixando de se entender qualquer ruído. Tudo parou. O pessoal na ponte ficou em silêncio, sem reacção. Senti-me só.
          Entretanto sem energia o Guarda-marinha entendeu vir à ponte para saber o que se passava e trazia a lanterna! Também o Engenheiro entrava na ponte informando da avaria do gerador.
          Nesta movimentação silenciosa e enervante entra na ponte o Mestre do navio que passa como uma sombra, por mim, dizendo-me em surdina: "é doce..." e, como entrara, saiu.
          Recordo com saudade o momento. Estava-se no início duma situação melindrosa, que poderia tornar-se angustiante, e num momento se esfumou merecendo o tratamento normal duma ocorrência a navegar.
          O S. Miguel iria ser fértil em ocorrências ao longo da sua curta vida entre nós e a todos marcou pela sua “maneira de ser”. Hoje todos os que por ele passaram o recordam com amizade e muita saudade.
          Depois… depois, foi o desenvolvimento das actividades necessárias à identificação e posterior correcção da avaria. Chegámos a Portimão como previsto e atracamos, sem rebocador e rodando no rio frente ao cais. Quando o mestre apitou “Volta à Faina” o navio tinha passado no seu primeiro teste e nós também …

Nota: Na leitura da sonda esta veio molhada mas com água doce pois a parte superior do tanque da aguada estava enfraquecida e furou. Com o balanço do navio a navegar a água invadiu o tubo da sonda e deu uma leitura “molhada”!
          Ao primeiro grito de água aberta o mestre desceu ao porão e junto da base do tubo da sonda verificou tratar-se de água doce proveniente do tanque.»

16/08/12

"HISTÓRIAS À VISTA" - 12

          12.ª “HISTÓRIA À VISTA”, da autoria do CMG REF Rodrigues Pereira, versando sobre a missão do Navio de Apoio "NRP São Miguel" na «Operação Granby» na Guerra do Golfo de 1991.

O “NRP SÃO MIGUEL” NO GOLFO PÉRSICO
A 1.ª MISSÃO DE PAZ DA MARINHA PORTUGUESA:


«1- SITUAÇÃO:
          A invasão do Kuwait pelo Exército do Iraque, na madrugada do dia 02 de Agosto de 1990, provocou em todo o Mundo uma crise de consequências então inimagináveis.
          Depois da surpresa inicial, os países ocidentais decidiram-se pela intervenção militar em defesa da Arábia Saudita ameaçada também agora pelas forças iraquianas. Apesar de estarmos em tempo de férias, as reacções foram-se sucedendo.
          No final da reunião do Conselho de Ministros de 30AGO90, o Ministro da Presidência e da Defesa Nacional, Dr. Fernando Nogueira, anunciava que, entre diversas medidas, o Governo disponibilizava o navio de apoio logístico “NRP São Miguel” para colaborar, ao abrigo da União da Europa Ocidental, com as Forças Internacionais que efectuavam as operações de embargo ao Iraque decretadas pela Organização das Nações Unidas, as outras medidas passaram pelo reforço militar da segurança de alguns aeroportos das regiões autónomas da Madeira e dos Açores e a disponibilização de um avião C-130 Hercules que viria a ser utilizado para evacuação de refugiados entre o Egipto e a Jordânia.
          De acordo com as primeiras informações – sempre de carácter não oficial – e as declarações dos responsáveis governamentais, o navio deveria cumprir uma Missão de cerca de 02 meses na região do Mar Vermelho.
          Deste modo, o navio foi mandado aprontar para uma missão de 02 meses naquela região.

2 - A MISSÃO:
          Face à decisão de enviar o navio para o Médio Oriente, procederam-se de imediato a algumas melhorias nos equipamentos do navio, especialmente nas áreas da navegação, das Comunicações e da Limitação de Avarias.
          A sua guarnição foi reforçada ficando a ser constituída por 68 elementos (09 Oficiais, 10 Sargentos e 49 Praças).
          No dia 10 de Setembro de 1990 o navio ficou pronto e a partir de 12SET passou a estar com prontidão de 48 horas, esperando-se a todo o momento a ordem de largada.
          Aproveitou-se, no entanto, os sucessivos adiamentos, foram-se efectuando alguns melhoramentos no navio:
• montagem de chuveiros contra ataque NBQ;
• melhoria, na medida do possível, da estanqueidade das áreas habitacionais (um dos graves problemas do navio em caso de ataque NBQ);
• pintura das superestuturas.
          Depois de cerca de um mês de espera e de incertezas, em que se chegou mesmo a pensar que o navio já não seria empenhado na missão, surgem os primeiros rumores sobre a sua concretização. O Ministério da Defesa do Reino Unido solicitara os serviços do navio para transportar material para um porto do Mar Vermelho, falando-se mesmo de Djeddah ou Djibouti.
          Em princípios de Outubro foram a bordo o Adido Naval do Reino Unido acompanhado de um Oficial ligado ao apoio logístico das forças britânicas estacionadas no Golfo e que afirmaram ser Dubai – já dentro do Golfo Pérsico – o destino da carga que o “NRP São Miguel” iria embarcar.
          Finalmente, as instruções para a viagem definiam que o navio deveria estar em Southampton no dia 05NOV90 para carregar material destinado ao Exército Inglês e Kuwaitiano e cujo destino era o porto de Al-Jubail, no Norte da Arábia Saudita (a cerca de 80 kms da fronteira do Kuwait).
          A missão era, afinal, bem diferente daquela que fora inicialmente prevista... e para a qual o navio fora preparado.

3 - A 1.ª VIAGEM:
a) Início

          A largada para a missão fez-se da Doca da Marinha em 31OUT90 pelas 1630 simultaneamente com a Fragata “NRP Comandante Sacadura Cabral” que ia integrar a NAVOCFORMED, a Força Naval da OTAN no Mar Mediterrâneo. Presentes a Banda da Armada (ao longe), representantes das entidades oficiais, alguns jornalistas e bastantes familiares. O EMA recomendara que se avisassem os familiares para evitassem cenas de choro porque estas tinham sido muito exploradas pela comunicação social durante a partida da fragata “NRP Comandante Roberto Ivens” para a NAVOCFORMED no mês de Agosto de 1990.
          Com vento bonançoso e mar de pequena vaga o “NRP São Miguel” foi transpondo sem dificuldades as 900 milhas marítimas que separam Lisboa de Southampton sem ter ainda conhecimento da carga que iria transportar. Uma certeza levávamos: por decisão do CEMA, não seriam explosivos.
          A entrada naquele porto britânico numa manhã de Domingo (04NOV) foi espectacular perante a presença de centenas de iates que navegavam naquelas águas (apesar das baixas temperaturas). Sentia-se que estávamos num país de marinheiros.
          Depois de atracados no cais militar de Marchwood, iniciaram-se as fainas de içar os paus de carga e abertura dos porões o que manteve a guarnição ocupada até ao final da tarde.
          Entretanto iniciaram-se os contactos com as autoridades militares inglesas para se saber a lista do material a embarcar, efectuar o respectivo «plano de estiva» e o necessário «cálculo de estabilidade», tendo em vista a compatibilidade da carga.
          Contudo, tal tornou-se um difícil problema face às constantes alterações de prioridades e ao aparecimento de material com características não previstas nas instruções. Daqui resultou um trabalho inglório de planos e cálculos cancelados. O navio carregou e descarregou 03 vezes antes de ficar pronto a largar. Largou pelas 1125 do dia 08NOV depois de 30 horas ininterruptas de faina e transportando apenas cerca de 650 toneladas de carga, entre as quais cerca de 40 de explosivos...
          Ainda em Inglaterra foi recebido o material NBQ de protecção individual com que fora decidido dotar o navio. O material, de origem inglesa, era o que de melhor existia na época, mas sendo diferente do existente na Escola de Limitação de Avarias, obrigou a um intenso estudo e instrução daquele material.
          De Southampton a Gibraltar foram cinco dias de viagem sem história, e que foram aproveitados para efectuar alguns exercícios de postos.
          A escala em Gibraltar, prevista para uma duração de 24 horas e onde, finalmente, se esperava dar algum descanso à guarnição, foi subitamente alterada. A urgência na chegada da carga à Arábia Saudita levou a reduzir a estadia ao tempo de reabastecimento não tendo havido licenças.
          O navio largou no próprio dia da chegada (12NOV) em direcção de Port Said. Aproveitando as correntes favoráveis o navio ganhou algumas horas à estima, que se revelariam decisivas nesta derrota. No 4.º dia de viagem surgiu o primeiro contratempo; uma avaria no circuito de ar de lavagem do motor principal obrigou a reduzir a velocidade. Conseguimos, apesar disso, atingir Port Said na data prevista (19NOV), efectuar a correcção da deficiência e atravessar o Canal do Suez nessa mesma noite.
          Durante este trajecto iniciaram-se os treinos intensivos com o material de protecção individual NBQ. O treino com o material NBQ iniciou-se logo à largada de Gibraltar e era executado diariamente de forma a ter o pessoal treinado logo que atingíssemos o Mar Vermelho. No entanto a instrução manteve-se até ao regresso ao Mar Mediterrâneo.
          Durante a curta estadia em Port Said o navio foi visitado pelo Embaixador de Portugal no Cairo que ali se deslocou expressamente, acompanhado do Secretário da Embaixada, para prestar o apoio que o navio necessitasse, tendo almoçado a bordo.

b) Travessia do Canal do Suez
          A travessia do Canal do Suez é uma manobra complicada face aos «condicionalismos locais» e às «peculiaridades» do sistema. Para atravessar o canal, o navio – mesmo de guerra – recebe a visita prévia das seguintes autoridades:
• Serviços de emigração, a quem tem de ser fornecido uma lista da guarnição e mostrados os bilhetes de identidade de todo o pessoal;
• Autoridades do Porto, a quem cabe verificar o estado do material do navio, desde os cabos, guinchos, baleeiras, etc.;
• Autoridades Sanitárias, a quem temos de responder a longo inquérito sobre o estado sanitário do navio;
• Agente Credenciado, para entregar a documentação do navio na Companhia do Canal;
          Toda esta burocracia pode ser simplificada se o navio se dispuser a oferecer alguns «presentes», geralmente tabaco americano…
          Antes de largar, o navio recebe a bordo o piloto, dois electricistas e 4 «moaring men». Ao piloto cabe aconselhar o Comandante sobre a manobra devendo este seguir as suas indicações; mas, mesmo nesse caso, se houver acidente a responsabilidade é totalmente do Comandante do navio. Os dois electricistas destinam-se a operar um projector que vai montado à proa para iluminar as margens do canal e que raramente é utilizado. Os «moaring men» destinam-se a efectuar a manobra de encapelar cabos se, em caso de emergência, o navio for obrigado a encostar na margem do canal (sendo a guarnição «estrangeira» no Egipto, não pode saltar para terra para fazer este serviço). A todos tem de ser fornecido alojamento e alimentação…
          As travessias do Canal do Suez são efectuadas por grupos de cerca de 30 navios saindo de Port Said cerca da meia-noite e de Suez cerca das 0600. Os dois comboios cruzam-se no Grande Lago Amargo onde por vezes se fundeia de forma a facilitar o cruzamento.
          A travessia Norte-Sul do canal terminou, no nosso caso, cerca das 1930 do dia 20NOV, iniciando-se a travessia do Mar Vermelho.

c) O Médio Oriente
          Começaram a sentir-se aqui os primeiros sinais da situação de crise que se vivia; o aparecimento de meios aéreos sobrevoando o navio passou a ser comum e quase com hora marcada. Primeiro americanos, no Golfo do Suez, depois ingleses e finalmente franceses, sobrevoavam o navio diariamente.
          A travessia do Mar Vermelho fez-se com tempo bastante quente e húmido e como incidente apenas uma avaria no piloto automático, levando o navio a fazer um círculo completo.
          Ultrapassado o Bab-el-Mandeb entrámos no Mar Arábico onde a monção de NE nos travava a progressão para o Estreito de Ormuz fazendo a velocidade baixar para os 10 nós, e continuando a ser seguidos por franceses, italianos e holandeses; até um draga-minas belga encontrámos; não vimos foi os nossos vizinhos espanhóis!
          Depois da travessia do Golfo, seguindo as rotas de navegação normais, atingimos o porto de Al-Jubail em 01DEZ90. A véspera da chegada foi marcada por um acontecimento inesperado: a notícia de que iríamos efectuar uma segunda viagem.

d) O Objectivo
          A descarga iniciou-se logo após a chegada sendo o pessoal do navio colocado a bordadas a fim de garantir a continuidade do trabalho.
          Durante a faina surgiram alguns contratempos que foram resolvidos o melhor possível, tais como a avaria no cabo do pau de carga dos porões 1 e 3 e a falta de rentabilidade do árabe operador do pórtico dos contentores. Os primeiros foram resolvidos pelo pessoal de bordo recorrendo a cabos novos; quanto ao árabe, interrompia o seu trabalho várias vezes ao dia para realizar os seus deveres religiosos deixando por vezes os contentores suspensos sobre o navio numa posição pouco “ortodoxa” e que impediam uma largada de emergência do navio.
          Na manhã no dia 2 de Dezembro de 1990 deu-se o facto talvez mais marcante desta viagem. Pelas 0830 verificou-se que os ingleses que se encontravam a bordo efectuando a descarga de navio começaram a envergar os seus fatos NBQ. Decidiu-se então tocar o alarme de bordo e todo o nosso pessoal envergou o seu fato, por ser igual ao dos ingleses esta situação inesperada, e que se manteve durante cerca de duas horas, mostrou a eficácia da instrução pois acabámos de nos equipar ao mesmo tempo que os ingleses! O navio foi preparado para largar de emergência.
          Soubemos depois que o Iraque lançara 03 mísseis SCUD sendo 02 em direcção a Israel e outro em direcção ao Porto onde nos encontrávamos, o que deu origem ao alarme.
          Talvez pensando numa “resposta preventiva” estes lançamentos não foram mais que uma provocação porque os mísseis foram auto-destruídos antes de ultrapassarem a fronteira do Iraque.
          Regressados à situação normal recomeçou a faina de descarga e terminada esta a carga de material de volta a Inglaterra, tendo largado cerca das 2300.
          Nesta estadia em Al-Jubail foi particularmente sentida a falta de apoio das entidades Diplomáticas e Consulares portuguesas incapazes de fazer chegar ao navio o correio a ele destinado e onde estavam face à época do ano, algumas lembranças de Natal para os elementos da guarnição. Apesar do esforço das entidades inglesas que chegaram a colocar um helicóptero à disposição só viríamos a receber o saco do correio em finais de Janeiro quando voltamos a Inglaterra.
          Este incidente deu mesmo origem a uma mensagem do Comandante das forças navais inglesas no Golfo chamando a atenção dos seus subordinados para a necessidade de garantir as chegadas do correio face aos problemas da moral que a sua falta provocava especialmente na época do Natal.
          A viagem de regresso foi aproveitada para realizar alguns trabalhos de beneficiação do navio de forma a fazê-lo chegar a Lisboa na melhor apresentação possível. O trabalho foi dificultado no entanto porque problemas de disponibilidade de energia eléctrica impediam a utilização de algum equipamento, nomeadamente o compressor que alimenta os martelos pneumáticos.
          A viagem até Alexandria decorreu sem história havendo apenas a referir o facto de o navio ter ultrapassado os 16 nós, com a ajuda da Monção, e de termos sido atingidos por uma tempestade de areia no trajecto de Suez para o Lago Amargo, dentro, portanto, do Canal. O piloto do canal do Suez que nos acompanhava abandonou o navio no Lago Amargo alegando doença. Em nossa opinião a razão poderá ter sido não levar «presentes» ou consequência da desorientação mostrada durante a tempestade que poderia ter colocado em risco o navio.
          No dia 14DEZ90 o navio atracou em Alexandria para uma estadia de três dias para descanso da guarnição: ali foram concedidas as primeiras licenças para terra desde que largamos de Inglaterra, havia já 37 dias.
          Tratando-se, ao que parece, da primeira visita de um navio da Armada Portuguesa a Alexandria, o nosso Cônsul Honorário elaborou um completo programa em que se incluiu a deposição de uma coroa de flores no monumento de Marinheiro Desconhecido egípcio e uma visita ao Cairo para toda a guarnição.
          De Alexandria largamos para a Palma de Maiorca onde festejamos a Consoada e donde largámos no dia de Natal à tarde. Neste Porto podemos assistir, pela TVE, à transmissão directa do espectáculo de variedades realizado a bordo dos navios espanhóis presentes no Mar Vermelho e com a presença do Ministro da Defesa espanhol.
          Durante o trajecto no Mediterrâneo e a solicitação superior foi solicitado ao pessoal do navio a devolução de parte do subsídio de embarque para que em Gibraltar o Conselho Administrativo dispusesse da verba necessária, em Libras, para pagar os fatos NBQ embarcados em Inglaterra; sentimo-nos como a guarnição do Cruzador “São Gabriel” quando em 1910 regressava a Portugal, depois uma viagem de circum-navegação e teve de utilizar as economias do pessoal para pagar combustível que os holandeses em Batávia (hoje Jacarta) exigiam a pronto pagamento.
          Depois, foi a escala em Gibraltar (27-28DEZ), para o pagamento dos fatos, largar material e reabastecer e, finalmente, a chegada a Lisboa em 29 Dezembro 90 sem pompa nem circunstância. Apenas alguns familiares aguardavam o navio.

4 - A 2.ª VIAGEM:
a) Preparativos

          Os preparativos para a 2.ª viagem começavam no próprio dia da chegada com uma reunião dos Oficiais do navio com representantes de organismos técnicos de forma a definir os trabalhos a executar nos dez dias úteis de que se dispunha.
          E logo no dia 02JAN91 o navio foi invadido por dezenas de operários que de forma um pouco desordenada iniciaram as reparações. Os trabalhos prolongaram-se para além do previsto e as experiências de máquinas acabariam por ser feitas na madrugada do dia 17JAN, data marcada para a largada.
          Quando se iniciaram os ataques aéreos ao Iraque (noite de 16JAN91) estávamos em provas de máquinas ao largo da barra do Tejo. Este facto, aliado à alteração inesperada do local de largada, contribuiu para que alguns dos elementos da guarnição não tivessem oportunidade de se despedir das famílias.
          Regressado da prova cerca das 0200 do dia 17JAN, como já se referiu, o navio não foi para a Doca da Marinha como previsto, mas voltou ao Arsenal donde realmente largou à hora prevista, apesar de ter sido necessário o pessoal de bordo completar uma reparação no navio em cima da hora.

b) Largada
          Cerca das 1700 do dia em que se iniciou o conflito o “NRP São Miguel” largou rumo a Inglaterra para carregar. Três dias depois, o navio é mandado desviar a rota para Portsmonth onde permaneceu cerca de dez dias aguardando a atribuição de carga pelas autoridades inglesas.
          Foram dias que custaram a passar porque nem o navio nem o pessoal estavam preparados para suportar um clima tão extremo, com temperaturas máximas que não ultrapassavam os 2º C.

c) As Esperas
          Depois de 3 dias de faina o navio foi carregado em Marchwood com cerca de 1.100 toneladas de carga diversa mas onde sobressaíam as 700 paletes de lagartas para carros de combate.
          Daqui o navio seguiu para Cascais onde fundeou para receber algum material que não fora possível embarcar antes da largada, nomeadamente alguns sobressalentes. Duas horas chegaram para o transbordo do material e logo o navio suspendeu rumo a Gibraltar onde chegaria no dia seguinte e onde se conheceu novo atraso na viagem. A carga que era previsto embarcar em Marselha não estava pronta e o navio ficou mais 7 dias em Gibraltar, ali passando o Carnaval.
          Depois de embarcar mais dois canos para peças de artilharia, o navio saiu em 13FEV91 para Marselha seguindo uma rota pré-estabelecida pelo Comando aliado no Mediterrâneo.
          Chegado ali em 16FEV, verificou-se que a carga ainda não estava pronta, seguindo-se nova espera de uma semana. Aqui a espera foi mais notada porque estávamos num cais a cerca de 14 km do centro da cidade e para onde não havia transporte depois das 20.00 horas (só o percurso a pé do navio ao portão do Porto eram 20 minutos). Um único aspecto positivo nesta estadia: a extrema amabilidade do Cônsul de Portugal Dr. Bettencourt Viana.
          Depois de carregado com mais 200 paletes de rações de combate o navio largou rumo a Port Said, seguindo de novo uma rota pré-estabelecida e vigiada, no dia em que se iniciou a ofensiva terrestre (22FEV).
          Atravessado o estreito de Messina em 24FEV, o navio foi apanhado por uma violenta tempestade com ventos forças 7/8 levando à alteração da rota de forma a navegar ao abrigo da ilha de Creta; tal permitiu-nos manter a velocidade e atingir Port Said na data prevista (27FEV). Apesar do mau tempo continuaram os treinos com o material NBQ.

d) A Travessia do Canal
          A chegada a Port Said foi assinalada com um incidente de que felizmente não resultaram danos pessoais. A imperícia do piloto egípcio e a sua teimosia em não utilizar o rebocador para a manobra de amarrar o navio às duas bóias, levou ao limite o esforço sobre uma espia provocando o seu corrimento e o partir do apoio do tambor onde se encontrava colhida, o qual foi embater num frade do pau de carga e, por pouco, não atingiu um dos elementos da faina.
          A travessia do Canal realizou-se na madrugada do dia 28 de Fevereiro data em que terminou a ofensiva terrestre. Apesar disso a travessia do Mar Vermelho revestiu-se das mesmas características da anterior.
          Ao contrário da anterior no entanto, estava a situação meteorológica: fomos sempre acompanhadas por ventos força 6/7 e mar cavado ou grosso.
          Ao ultrapassar o estreito de Ormuz, e perante a possibilidade de existência de minas reforçou-se a vigilância aumentando o número de vigias e navegou-se de forma a passar durante o dia na área mais perigosa. A vigilância de objectos à superfície era dificultada pela existência dos restos do crude, pois nunca se sabia o que haveria no interior de uma mancha de crude.
          Chegámos a Al Jubail em 10MAR data da assinatura do cessar-fogo; assim procedeu-se à descarga das rações de combate, que se destinavam aos prisioneiros de guerra, e ao embarque de mais paletes com destino a Inglaterra. Durante a estadia em Al Jubail notou-se o efeito dos incêndios nos poços de petróleo; a atmosfera era carregada, o fumo tapava o Sol e o cheiro era incomodativo. Alguns elementos da guarnição chegaram mesmo a receber assistência médica.
          Largámos no dia seguinte rumo a Dammam, onde fundeamos para reabastecer, largando a 12 de Março com destino ao Suez.

e) O regresso
          Contrariamente ao previsível, a viagem de regresso fez-se já com a Monção de SW o que retardou a progressão do navio. Durante esta longa travessia dois acontecimentos se assinalam.
          Depois do passar o Bab el-Mandeb o navio suportou mais uma vez, ventos de força 8 e mar grosso; durante esta tempestade cruzámo-nos com uma embarcação local, à vela cujas características fazem lembrar as nossas caravelas dos Descobrimentos o que apesar dos seus 15 metros de comprimento suportava muito bem aquele temporal violento.
          Na madrugada do dia da chegada ao Suez, uma avaria no circuito de vapor de aquecimento dos tanques de nafta provocou um derrame daquele combustível no convés. Foi uma faina árdua e demorada, a limpeza daquele combustível e que obrigou a ocupar todo pessoal até à hora do jantar.
          A travessia do canal fez-se sem história, mas à saída para o Mediterrâneo fomos surpreendidos por mais um temporal que fez atrasar a nossa chegada a Atenas. A estadia em Atenas permitiu à guarnição um curto período de descanso depois de mais de um mês de viagem quase sempre sob mau tempo.
          A Marinha Grega proporcionou a toda a guarnição o transporte para uma visita à Acrópole (a entrada foi paga pela guarnição) e o Embaixador de Portugal convidou os Oficiais para um almoço na sua residência.
          De Atenas largámos rumo a Gibraltar passando o Domingo de Páscoa a Sul de Itália, sob mau tempo. A escala em Gibraltar resumiu-se ao tempo de reabastecimento, seguindo o navio para Southampton mas, para terminar bem, fomos surpreendidos no Golfo da Biscaia, por um violento temporal com ventos atingindo a força 11 e mar alteroso. Tal facto obrigou-nos a colocar o navio de capa durante quase dois dias, atrasando a nossa chegada a Inglaterra.
          Em Southampton foi recebida a visita do Director-Geral de Transportes do Ministério da Defesa britânico que, em nome do seu Ministro, foi a bordo agradecer a colaboração do “NRP São Miguel” na «Operação Granby», nome dado pelos ingleses à operação de transporte logístico para o Golfo, e ofereceu um quadro alusivo ao facto que se foi colocado na câmara de Oficiais.
          Descarregado o navio em dois dias e meio regressamos a Lisboa onde só chegamos no dia 13 de Abril a fim de não o fazer em simultâneo com a entrega do Estandarte ao “NRP Vasco da Gama”, cerimónia que foi presidida pelo então Primeiro-Ministro Professor Cavaco Silva.

Conclusões:
          Diferentemente do inicialmente previsto o “NRP São Miguel” esteve empenhado, durante mais de 06 meses, na Crise e posterior Guerra do Golfo, efectuou duas viagens em apoio do Exército Inglês e Kuwaitiano, mas fê-lo julga-se com prestígio para o país e a Marinha, como foi reconhecido pelas autoridades inglesas.
          Durante todo o período da Missão foram frequentes as afirmações de responsáveis políticos nacionais afirmando não haver militares portugueses no Golfo...

Resumo:
• Visitaram-se os seguintes Portos: Southampton, Porthmouth, Gibraltar, Marselha, Palma de Maiorca, Pireu (Atenas), Alexandria, Port Said, Port Suez, Al Jubayl, Damman e Fuijhairah.
• Navegaram-se cerca de 2.700 horas (correspondente a cerca de 100 dias) e percorreram-se cerca de 28.000 milhas (cerca de 1,5 vezes o diâmetro da terra no Equador).
• Transportaram-se:
- 700 toneladas na primeira viagem;
- 200 toneladas no regresso;
-1100 toneladas na segunda viagem;
-1200 toneladas no regresso.
• A capacidade do navio era de 5.500 toneladas.

Nota final:
          Foi mandado executar um autocolante alusivo à Missão, baseado num concurso de ideias efectuado a bordo. A guarnição continua a reunir-se anualmente em Abril, para recordar as viagens que aqui ficam descritas.
          A guarnição do “NRP São Miguel” não recebeu qualquer tipo de condecoração na sequência da missão aqui relatada, o que se julga ser caso único. A guarnição do C-130 Hercules da Força Aérea Portuguesa, referido no início do artigo, foi agraciada, individualmente, com a Medalha Militar de Serviços Distintos. O governo inglês atribuiu a todos os participantes na «Operação Granby», mesmo aos estrangeiros, uma medalha comemorativa.»

04/08/12

GIROCÓPTERO NA ESCOLA DE FUZILEIROS

          Entre 1961 e 1964, por sugestão da Direcção Técnica ou proposto por diversas empresas de material militar (portuguesas e estrangeiras), entre as quais a empresa portuguesa Norte Importadora Ldª, foi exibido diversos meios e equipamentos militares (armamento ligeiro e de apoio; meios aéreos, terrestres e anfíbios) que demonstravam as suas capacidades em testes realizados na Escola de Fuzileiros, sob orientação técnica do então 1.º Tenente Maxfredo da Costa Campos (Oficial de Marinha com o curso FZE).
          Verificou-se que durante os testes diversos meios não correspondiam aos requisitos técnicos exigidos pela Direcção Técnica, outros que por sua vez obedeciam, não eram a posteriori aprovado superiormente a sua aquisição, em virtude do alto custo por unidade ou mera possibilidade de adquirir poucas unidades que não justificariam a criação da respectiva cadeia logística.

MEIOS AÉREOS


1.º Tenente Maxfredo da Costa Campos ao comando do girocóptero BENSEN B-8M (imagem cedida por Associação de Fuzileiros).

          Em 1963, com o intuito de colmatar a falta de meios de apoio aéreo de asa rotativa (helicóptero) orgânicos da Armada / Fuzileiros, foi apresentado por um comerciante de armamento (Sr. José Zoio) uma pequena aeronave (ultraleve monolugar) para uso por particulares na Escola de Fuzileiros.
          Consistia num girocóptero (híbrido de helicóptero e avião) BENSEN B-8M de fabrico Norte-americano (Bensen Aircraft Corporation), desenhado em 1956 por Igor Bensen, Engenheiro Aeronáutico de origem russa naturalizado Norte-americano, tornando-se um meio popularmente famoso nos EUA em virtude do seu design simples, possibilidade de pilotagem sem licença (brevet) de piloto, facilidade de operação e pelo facto de aquando da sua aquisição, se poder optar por vir já montado ou em kit pré-fabricado para montagem posterior.
          Esta aeronave de impulso propulsor, tinha a vantagem de reunir os benefícios dos helicópteros e aviões, a título de exemplo: ao contrário de um helicóptero, como as pás do seu rotor não necessitam de energia, caso o motor falhe conseguia facilmente planar até uma aterragem segura, em virtude de ser pouco afectado por vento forte.
          Coube ao 1.º Tenente em apreço (actualmente CMG REF) testar este ultraleve monolugar na Escola de Fuzileiros, assim como posteriormente no Aeródromo de Santa Cruz - Torres Vedras, tendo sido inclusivo neste local motivo de uma reportagem por parte da RTP e imprensa escrita.
          Na época esta aeronave tinha um custo de 75.180 Escudos (375 €), requeria somente de 15 metros de pista para descolagem e respectivamente de 07 metros para aterragem, no que concerne à sua utilização se tivesse efectivado a compra, visava o reconhecimento, recolha de informação e transporte de um ferido grave numa maca, por recurso a gancho para carga externa suspensa.


Perfil do girocóptero BENSEN B-8M.

PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS:
- Fabricante: Bensen Aircraft Corp;
- Modelo: BENSEN B-8M;
- Dimensões: 3,45 x 1,90 x 6,10 metros (comprimento, altura, diâmetro do rotor);
- Motor (a pistão): McCulloch 4318 com 72cv e 04 cilindros propulsionado por uma hélice;
- Peso: 226,8 kg;
- Tripulação: 01 piloto;
- Velocidade máxima: 136,7 km;
- Alcance: 160,9 km;
- Autonomia: 01h25m;
- Altitude máxima: 3.810 metros;
- Combustível: mistura (40 litros).