13.ª “HISTÓRIA À VISTA”, da autoria do CMG REF Oliveira e Costa, 1.º Oficial a exercer o Comando do “NRP São Miguel” (1985-1988), versando as suas memórias (ao todo 15) de momentos vividos a bordo, durante a sua comissão de serviço.
MEMÓRIA n.º 1: doce...
«Ainda era o dia 13 de Março de 1986. Navegávamos para Sul a caminho do Porto de Portimão. Era a primeira saída do navio, “para o mar”, desde que “entrara” para a Marinha a 6SET85. O “abandonado N/M “CABO VERDE” transformara-se no orgulhoso N.R.P. “SÃO MIGUEL”. Navegava com uma guarnição heterogénea sem treinos ou exercícios. Eu tinha desembarcado havia já 19 longos anos, como oficial de guarnição, e não tinha o Curso de Comandante.
Ainda éramos proscritos perante o Estado-maior e Superintendências, que não aceitaram desde o início a singular “aquisição” do navio pelo CEMA de então.
Íamos abastecidos para oito dias. Foram fornecidos ao navio gasóleo, nafta, água doce e géneros alimentícios. Tudo o resto como luvas de cabedal, capotes, tintas, papel higiénico, lanterna, binóculos, defensas e tudo aquilo que possam imaginar existia a bordo por empréstimo das Corvetas e Fragatas e cedidas, por amizade, e na situação de empréstimo ao Comandante, Oficiais e Sargentos que o solicitavam junto dos camaradas amigos e embarcados ou em terra.
A anterior tripulação levou tudo o que pôde, desmantelou o quadro de manobra da máquina (espalhando as peças pelo porão), inviabilizando o navio navegar, pois aquela arrancava com gasoil e depois é que passava para nafta. Também fez desaparecer os manuais deixando somente alguns manuscritos em sueco, sem esquemas ou figuras.
A guarnição era de 28 homens e só os Cabos e um Marinheiro sabiam fazer leme!
O navio largara no dia 12 de Março mas problemas na máquina, logo em frente à Torre de Belém, aconselharam fundear no Dafundo e esperar a recuperação do material avariado, pelo Arsenal do Alfeite. Corrigidas as anomalias largámos meio da tarde do dia seguinte, dia 13 de Março.
Já noite escura navegando na latitude de Sines ficou o navio sem energia. A única lanterna existente estava na ponte e, quando se procurou verificou-se que o Sr. Guarda-marinha a tinha levado para o camarote! Na mesma altura o Cabo encarregue das rondas de segurança ao navio gritava do Convés: “Água Aberta” enquanto esbaforido se dirigia, aos tropeções, para a ponte.
O tempo parou! Era como se o navio tivesse passado a navegar à vela deixando de se entender qualquer ruído. Tudo parou. O pessoal na ponte ficou em silêncio, sem reacção. Senti-me só.
Entretanto sem energia o Guarda-marinha entendeu vir à ponte para saber o que se passava e trazia a lanterna! Também o Engenheiro entrava na ponte informando da avaria do gerador.
Nesta movimentação silenciosa e enervante entra na ponte o Mestre do navio que passa como uma sombra, por mim, dizendo-me em surdina: "é doce..." e, como entrara, saiu.
Recordo com saudade o momento. Estava-se no início duma situação melindrosa, que poderia tornar-se angustiante, e num momento se esfumou merecendo o tratamento normal duma ocorrência a navegar.
O S. Miguel iria ser fértil em ocorrências ao longo da sua curta vida entre nós e a todos marcou pela sua “maneira de ser”. Hoje todos os que por ele passaram o recordam com amizade e muita saudade.
Depois… depois, foi o desenvolvimento das actividades necessárias à identificação e posterior correcção da avaria. Chegámos a Portimão como previsto e atracamos, sem rebocador e rodando no rio frente ao cais. Quando o mestre apitou “Volta à Faina” o navio tinha passado no seu primeiro teste e nós também …
Nota: Na leitura da sonda esta veio molhada mas com água doce pois a parte superior do tanque da aguada estava enfraquecida e furou. Com o balanço do navio a navegar a água invadiu o tubo da sonda e deu uma leitura “molhada”!
Ao primeiro grito de água aberta o mestre desceu ao porão e junto da base do tubo da sonda verificou tratar-se de água doce proveniente do tanque.»
Interessante história, exemplificativa do tradicional desenrascanso naval.
ResponderEliminar1985, eu já não estava ao serviço.
Parabéns ao Com.te Oliveira e Costa e, claro, ao autor do blog.
Nunes da Silva
Obrigado Sr. Almirante pela sua atenção, cuidado e amizade.
EliminarRespeitosos cumprimentos,
oc.
Pelo que acabei de ler, o meu ex-companheiro de camarote na saudosa "Corte Real" nao perdeu o seu provado bom-humor.
ResponderEliminarAinda hoje recordo a sua trapalhada com as nossas fardas nos quartos de madrugada, sempre que te rendia.
Grande abraco
Manelmpinto
Que saudades...
EliminarBom amigo obrigado pela recordação e amizade.
Um abraço,
oc.