04/09/12

"HISTÓRIAS À VISTA" - 14

          14.ª “HISTÓRIA À VISTA” na senda das memórias do 1.º Comandante do Navio de Apoio “NRP São Miguel” - CMG REF Oliveira e Costa (1985-1988).

MEMÓRIA N.º 2: A primeira defensa e as outras!

          Tinha 15 dias de comando de um navio ainda exteriormente identificado como navio mercante, embora já pertencente à Armada, sabendo-se que o seu nome seria “São Miguel”. Era omnipresente, e por todos sofrido, o ostracismo a que o navio tinha sido votado pelo Estado-Maior.
          Verdade seja dita que ao longo de toda a minha comissão tive sempre o apoio e incentivo do Alm. CEMA, Alm. VICECEMA e do CFR Oficial às Ordens do Alm. CEMA. O sucesso alcançado na recuperação do navio muito se deve à posição por eles assumida.
          Era desolador ver e sentir o estado psicológico e físico daquela guarnição que, “aguentando a guinada”, não esmoreceu perante tantas contrariedades conseguindo levar por diante, com respeito, muita disciplina e amor à Marinha a recuperação do navio. Éramos generosos e humildes. Todos tentavam cumprir dando o melhor que sabiam e podiam na execução das tarefas que lhe iam sendo cometidas.
          Quando subi pela primeira vez a prancha do navio fui recebido pelo Imediato, Engenheiro e pelo Mestre. A uns cinco metros observavam, encostados à borda, numa atitude que considerei irreverente, algumas Praças da Guarda fiscal e alguns elementos da Companhia de Navegação, a que pertencera o navio e que, àquela data, ainda se encontravam embarcados.
          Senti, com tristeza, como uma confirmação, de que algo não estava a correr bem para mim. Já na véspera recebera do 1º Ten., da secretaria da DSP, a Guia para o comando do “São Miguel”... sabendo por ele que já tinha como Oficial Imediato o Cten. António Meyrelles. Antes de terminados os cumprimentos já tinha decidido aceitar o desafio embora não fazendo a mínima ideia da situação em que se encontrava a unidade.
          No camarote fardei-me de serviço interno e dei início a uma faina geral, sem o ostentar, que durou 07 longos meses! Cerca de 02 meses mais tarde tomei posse, no Gabinete do Alm. CEMA, do Comando do “São Miguel” e eu seria o seu primeiro Comandante.
          Naquele dia, da minha primeira entrada a bordo, o navio estava atracado “à pedra” no Cais do Tabaco o que me trouxe à ideia a imagem, para mim sempre repulsiva dos navios vendidos para sucata encostados e “abandonados” no Poço do Bispo. Uma tristeza que os olhos viam mas que o coração não aceitava.
          Por vontade do Estado-Maior ali deveria continuar, e ficar, tal o incómodo e mal-estar que a vinda daquele navio para a Armada lhes causava. (Quão distante na imponência e longínqua a transmudação que se iria constatar no dia 04 de Abril de 1988, a bordo, quando da entrega do comando ao CFR Brito Subtil, na Doca da Marinha em acto presidido pelo Comandante Naval do Continente, Vice-almirante Rodrigues Consolado!).
          Os tripulantes civis e as Praças da então Brigada Fiscal mantinham-se a bordo, por turnos, trazendo o almoço em lancheiras e utilizando como sala de estar e de refeições, o salote que viria mais tarde a ser a Câmara dos Sargentos. A primeira acção era sem dúvida fazer desembarcar aquele pessoal estranho à Armada. O Oficial Imediato foi um dos grandes obreiros nas diversas soluções encontradas até à completa saída desse pessoal.
          Não que fossem indesejáveis mas assim o navio estava mais arejado! Comandante, Imediato, Engenheiro (do Serviço Especial), Mestre, 02 Sargentos e 1 Praça de máquinas e 02 Praças de manobra, num total de 09 homens, compunham a guarnição do navio naqueles primeiros dias do meu comando!
          O navio não tinha energia nem água. Era simplesmente um casco degradado e ferrugento, frio, austero e distante. O convés era uma “estrada” de ferrugem com alguns buracos de tinta! Os elementos da guarnição, que ia aumentando muito lentamente, almoçavam em Alcântara. Para agilizar a saída do pessoal estranho à Armada conseguiu-se que o navio mudasse do Cais do Tabaco para o Cais da Doca da Marinha concretizando-se então a saída desse pessoal.
          Na Doca da Marinha ficando, ali também sem defensas, atracado à muralha! Todos os dias me deslocava pelas Unidades, Departamentos e Serviços procurando encontrar apoio para a recuperação do navio. Era um trabalho desgastante e de reduzidos resultados práticos face aos empréstimos conseguidos, particulares e clandestinos, mediante vale assinado por mim junto de camaradas amigos.
          O “São Miguel” ia-se “compondo” em material e pessoal. Desde o primeiro dia em que o navio “assentou praça” que a guarnição se dedicou com afinco na sua recuperação. Com apenas 15 dias de comando o número de Requisições era grande e não se vislumbravam datas para a sua satisfação.
          Entre as muitas preocupações sobressaía a falta de defensas. Com ventos do quadrante Sul o navio batia na pedra de forma inaceitável criando-se a bordo um ambiente penoso e difícil de aceitar agravado com a situação do navio estar apagado, sem energia, água e sei lá mais o quê... O casco era uma impressionante caixa de ecos.
          Falei com o Mestre. Tinha de se encontrar uma solução para as defensas. Nesse mesmo dia, à tarde, reparei no Mestre, o 2º Sarg. M. Vasconcelos, a entrar na Doca da Marinha, fardado de serviço interno, empurrando um enorme pneu de camião fazendo-o rodar até à prancha do “São Miguel”. Comprara-o, à sua custa, por 100 Escudos, nas Bombas de Gasolina do lado de fora da Doca.
          Este pneu de camião foi a primeira defensa do “São Miguel” como navio da Marinha de Guerra Portuguesa! Só mais tarde me apercebi da força moralizadora que esta acção teve nos poucos e desconsiderados elementos daquela guarnição, de um navio sem futuro previsível, que a Marinha teimava em menosprezar tratando-o como a um “filho bastardo”.
          Mais duas semanas se passaram e tivemos de regressar ao Cais do Tabaco pois o lugar na Doca ficara indisponível. Desta vez, só com pessoal da Armada, o navio ficou atracado mas com uma defensa! As soluções que se iam encontrando para minorar as nossas carências eram cada vez mais sofisticadas.
          Entretanto já recebíamos energia de terra. O ambiente a bordo “melhorou” bastante e a guarnição com redobrado entusiasmo, sem aparato e em surdina continuou, de forma cada vez mais empenhada, na recuperação do navio que afinal era só “seu”!
          Beneficiou-se o aparelho dos paus de carga e os circuitos hidráulicos dentro das limitadíssimas possibilidades do navio e dos seus homens conseguindo-se que os paus aceitassem alguma carga mas sem confiança devido aos derrames do óleo e à degradação do material. Lentamente algumas das requesições iam sendo satisfeitas mas não se vislumbrava qualquer hipótese de nos serem fornecidas as tão desejadas defensas.
          Assim numa sexta-feira à noite eu, o Mestre e mais dois Marinheiros fizemos rolar duas grandes defensas até junto do navio, constituídas por um tronco ferrado, onde enfiavam dois pneus, com amarretas de suspensão, e, operando os paus de carga, colocámo-las na água amarrando-as para o navio. Tinham sido “recuperadas” de um monte de material diverso e “abandonado” no cais, não distante do navio.
          Na altura ninguém perguntou por elas e quando alguém da AGPL, algum tempo depois, perguntou de quem eram aquelas defensas claro está que a resposta foi só uma:
- “Eram da Marinha!”.
          A “defensa do Mestre” fora entretanto “carinhosamente” dispensada, guardada e peada no Porão do Comandante, o porão n.º 3.

4 comentários:

  1. Reitero os parabéns ao autor do texto, o Sr Comandante Oliveira e Costa, e ao autor do Blog pela oportunidade que nos dá de contactarmos com esta realidade tão "carinhosamente" naval..
    BC

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  2. Recebido por correio electrónico do CMG RES Leão Seabra

    UMA “BOLEIA” ESPECIAL

    Sem a precisão que esta "História à Vista" merece (já lá vão cerca de 26 anos), não resisto a relatar mais este episódio a anexar a tantos outros deste navio.
    Estávamos em 1986, era eu 1TEN FZ RN e frequentava o último Ano do 5º COF a decorrer na Escola Naval. No cumprimento do plano curricular do curso, encontrava-me no Ponto de Apoio Naval de Troia (PANTROIA), com o estatuto de Observador de um exercício do BRD, quando o "NRP SÃO MIGUEL", numa certa tarde, atracou ao Cais para ali passar a noite e rumar, no dia seguinte, ao Sul do País. Não conhecendo o seu Comandante (CMG Oliveira e Costa) mas conhecendo o seu Imediato (CTen António Meyrelles), fui a bordo cumprimentá-los. Desse encontro, resultou o convite para o jantar, que aceitei com todo o prazer e uma visita guiada ao Navio, ficando surpreendido com os "espaços" proporcionados à Guarnição, designadamente os espaços de alojamento (camarotes), os corredores, as câmaras, a ponte...tudo à grande!
    Foi durante o jantar que soube ser esta a primeira saída oficial do Navio pelo que, quer o Comandante, quer a Guarnição se encontravam, ainda, em “experiências”. Em conversa sobre as famílias, disse que a minha mulher e filho se encontravam de férias no Algarve (Lagos) aguardando a minha chegada, após a conclusão da minha participação neste exercício. Foi nesta altura que o Imediato, com o consentimento do Comandante, me ofereceu "boleia", convite que muito me orgulhou por vir de dois Oficiais Superiores de Marinha e eu ser, simplesmente, um Subalterno Fuzileiro que, à data, face ao tratamento generalizado a bordo dos Navios de Guerra, encarávamos os Navios como meios da Marinha cedidos, por especial favor, aos Fuzileiros como apoio à realização dos seus exercícios.
    Obtida a necessária autorização do Comandante do exercício, embarquei às 2300 hrs desse mesmo dia, passando a noite a bordo e alojado no camarote do Engenheiro, inveja garantida a qualquer quarto de hotel de 4 estrelas!
    Largamos cedo, almoçamos no percurso e, umas horas depois, fundeávamos ao largo de Lagos em local com vista soberba sobre a cidade. Estava incrédulo...
    Experiência por experiência, há que testar a faina do arriar da “baleeira”...
    Desci com ela e nela segui até ao cais de Lagos, onde desembarquei sobre o olhar curioso de turistas e pescadores.
    E foi assim que este Primeiro-Tenente Fuzileiro, uniformizado a rigor (boina azul-ferrete, camuflado e bota de combate) e de mochila militar às costas, vindo do MAR… P’RÁ TERRA, percorreu toda a avenida marginal de Lagos, num dia qualquer do ano de 1986, vaidoso e orgulhoso por pertencer à Marinha de Guerra Portuguesa e ansioso, muito ansioso por poder surpreender a minha mulher e o meu filho neste início de férias antecipado, só possível porque, afinal, o espírito do "botão de âncora" sempre existiu desde os primórdios da nossa Marinha.
    Uma “boleia” assim nunca se esquece!

    CMG FZ RES Leão de Seabra

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    Respostas
    1. Caríssimo um abraço.
      O tempo é um juiz impiedoso, implacável e insubornável!
      Recordar com prazer é uma bênção.
      Um saudoso abraço,
      oc.

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