16/09/12

"HISTÓRIAS À VISTA" - 16

          16.ª “HISTÓRIA À VISTA”, da autoria do SAJ FZ RES Rogério Pinho Silva. Além de Fuzileiro, tem a especialidade de Dactilografia, mas é mais conhecido entre os seus camaradas pela sua qualidade como Fotógrafo, tendo inclusivamente exercido o cargo de Chefe da Subsecção de Audiovisuais do Comando do Corpo de Fuzileiros.
          Destaque para a sua participação em Forças de Fuzileiros destacadas em 02 missões no estrangeiro: Bósnia-Herzegovina e Afeganistão, nesta última, a 21 de Janeiro de 2011, promoveu nas instalações do Bar Português de "Camp Warehouse", uma mostra de fotografia denominada “Olhares sobre o Afeganistão”.

MISSÃO - AFEGANISTÃO:

Segunda-feira, 27 de Setembro de 2010.
          Próximo da meia-noite é dada ordem de embarque no Aeroporto Militar de Figo Maduro. Todos estão ansiosos e apreensivos porque a espera acontece desde as 21:00 horas. A juntar a este pormenor, a separação e o adeus à família e aos amigos acabou de acontecer. As recomendações de prudência que a familia não cessa de aconselhar, trazem à memória aquilo que ninguém quer recordar, (as longas horas a visionar imagens de violentos atentados durante a preparação).
          Após uma curta mas simbólica cerimónia de despedida, foi iniciada a viagem rumo à pista onde se encontra o avião. Este vai cruzar vários territórios, percorrendo cerca de 7.000 km até chegar ao destino. Entre preparativos e embarque, aproximamo-nos das 01.00 horas do dia 28, quando o avião inicia a descolagem rumo ao Aeroporto de Cabul.
          Com a diferença dos vários meridianos que vamos atravessando, algumas horas depois de iniciar o voo, o dia era já visível através das janelas do avião. Recordo-me, já no final da viagem, de avistar a cadeia de montanhas que protege o vale de Cabul e pareceu-me impossível o avião aterrar naquele lugar. Com a continuidade do voo, percebi que afinal o vale é enorme e a pista ainda se encontra bem longe. No entanto, um mês depois de estarmos em “Warehouse”, um avião de carga embateu na montanha à entrada do vale e explodiu. As chamas ficaram visíveis do campo onde nos encontráva-mos.
          A chegada a Cabul deu-se por volta do meio-dia, 08:30 horas de Portugal, o que significa que o voo durou cerca de 07:00 horas. Como a viagem para “Camp Warehouse” obedece a regras apertadas de segurança, o transporte foi solicitado às tropas americanas. As horas foram passando e só por volta das 19:00 horas chegámos ao local. Estava já a decorrer o jantar.
          Durante alguns dias fizemos a adaptação à altitude e ao clima e levantámos o equipamento e armamento, enquanto esperávamos pelo ID Card, documento sem o qual não pode haver saída para o exterior de “Camp Warehouse”.
          A visita ao KMTC, local para a nossa tarefa de formadores, foi efectuada logo após recebermos a identificação. A expectativa do que poderíamos encontrar e a formação que fizemos após chegarmos a “Camp Warehouse”, deixou uma ansiedade que só viria a dissipar-se após a visita efectuada. Após sairmos dos muros fortificados de “Warehouse” e para alguém que nunca conheceu um país fora da Europa, a primeira impressão que tive foi de que tinha viajado no tempo e tinha parado exactamente em 1390, data actual do calendário Afegão.
          Ao olhar os rostos dos militares do ANA, que estão em formação, fica-se com a ideia que a maioria deles estão já na idade de passagem à reserva. Os traços vincados no rosto demonstram bem o sofrimento desta gente, que provavelmente passou uma grande parte da sua vida a sobreviver. O sol impiedoso queima a pele que habituou a defender-se dos raios solares sem nenhum tipo de cuidado ou protecção.
          Tudo o que se respira é um pó fino, areado, que em pouco tempo é sentido entre os dentes. Este pó é o efeito de quase uma dezena de meses sem chuva e o seu cheiro é muitas vezes nauseabundo, devido aos esgotos a céu aberto.
          Visitámos as futuras instalações para alojamento dos candidatos a Sargentos do ANA (Afeghan National Army), os responsáveis pela formação directa e ainda o Estado-Maior do Curso onde se esboça o primeiro planeamento, que será depois alterado vezes sem conta pelo MoD (Ministério da Defesa) do Afeganistão.
          Em direcção a “Camp Canadian”, pudemos observar as zonas envolventes usadas para treino militar. É difícil contar os milhares de militares que treinam ali em simultâneo, diariamente. Em “Camp Canadian” assistimos ao levantamento controlado das M-16. Felizmente, mais tarde viríamos a conseguir um contentor e armas para o TLC Team Líder Course, que viriam a ser colocadas no KMTC. Isto significou uma maior autonomia e uma melhor gestão nos tempos de formação, pois “Camp Canadian” dista do KMTC cerca de 04 quilómetros e obriga a uma gestão cuidada da Force Protection.
          A tarefa mais difícil é a conquista da confiança com os Instrutores e o Staff do TLC. Os Afegão são extremamente orgulhosos e apenas estarão receptivos se confiarem nas pessoas que lhe estão a passar a informação e se acharem que ela é válida. É um trabalho árduo e lento. É também extremamente desgastante e por vezes quase leva os formadores a desistir. Só uma força de vontade muito grande e total disponibilidade e persistência, poderão trazer resultados no futuro.
          São ávidos a pedir. Fazem-no constantemente e temos que ter o cuidado de não prometer aquilo que não nos é possível satisfazer, ou corremos o risco de perder a amizade, construída com muito esforço. Se for preciso temos de ser frontais. Eles também apreciam essa qualidade.
          Ao longo dos cursos que fomos apoiando, verificámos que a rotina é um aspecto extremamente desgastante para os instrutores. De três em três semanas recebem novos recrutas, não existem férias anuais e podem passar cinco ou seis anos a realizar as mesmas tarefas.
          São afáveis e não são egoístas. Eramos sempre os primeiros a ser convidados para o almoço que regra geral é composto por arroz e carne de caprino. O pão é extremamente saboroso, talvez por ser fabricado de forma arcaica. No campo, em exercícios, recordo-me de ser abordado por um Major do ANA que me perguntou se era católico, ao que eu respondi afirmativo. Disse-lhe que em Portugal existem diversas religiões e que graças à nossa tolerância, todas elas têm o seu lugar sem existir radicalismo.
          Graças ao Comando da Força, por diversas vezes foi feito o levantamento de algumas necessidades nas áreas quer da Formação, quer da Mentorização e foi entregue diverso material de apoio. A alegria com que eles recebem as coisas mais simples, é para nós um estímulo! Foram estes pormenores e o intercâmbio que fizemos ao longo dos mais de 200 dias de permanência que ajudaram a criar os laços de amizade que ainda hoje transporto comigo e que criaram um nó na garganta na hora da despedida.
          Tenho na parede de casa, tal como os camaradas da equipa do KMTC, um simples papel A4 assinado pelo Big. Gen. Aminullah, Comandante do KMTC, reconhecendo o trabalho, o empenho e a dedicação postos na tarefa de formação e mentorização. É sem dúvida uma recordação que guardarei com alegria até ao final da minha vida.

1 comentário:

  1. Obrigado meu caro administrador deste fabuloso blogue, por trazer ao conhecimento das pessoas mais este escrito. Sendo que, para além do mais, é uma fiel radiografia de sentimentos, aos quais me rendo muito respeitosamente. Não é só porque conheço o Camarada e Amigo Silva, que resulta, das minhas abordagens, tendo em vista, a satisfação de algumas necessidades para a feitura do Boletim o Desembarque da Associação de Fuzileiros! Mas muito em especial, pelo conhecimento que tenho, da sua entrega em tudo quanto se envolvia, estando em causa a imagem dos nossos Fuzileiros. Por aqui me fico, porque falar de um Fuzo desta têmpera, até para mim seria fácil, e sendo verdadeiro. O meu grande abraço

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