13/09/12

"HISTÓRIAS À VISTA" - 15

          15.ª “HISTÓRIA À VISTA”, continuação das memórias do 1.º Comandante do Navio de Apoio “NRP São Miguel” - CMG REF Oliveira e Costa (1985-1988).

MEMÓRIA n.º 3: Pintado de cinzento?

          O “São Miguel”, de maneira “leviana”, diga-se, era amado por quem nele estava e desprezado ou odiado por quem estava de “fora”. Precisando melhor a sua guarnição tinha como elevada aspiração recupera-lo totalmente e pô-lo a navegar e, do lado de fora, contavam-se pelos dedos de uma mão os Oficiais empenhados e igualmente interessados na sua recuperação. Não é exagero é a verdade pura, fria e triste.
          Muitas foram as situações que podem ilustrar esse sentimento que vinha desde o primeiro dia em que aquele “entrara” na Marinha pela mão do Alm. CEMA de então. Apesar desse manifesto desconforto todos os elementos da guarnição se empenhavam, cada um de per si, com entusiasmo, dentro das suas capacidades e dimensão, na execução das tarefas que lhes iam sendo cometidas contrariando o negativismo que rodeava o navio e, por simpatia, a sua guarnição.
          Grande parte da logística, no início da sua “vida”, foi essencialmente concretizada através da satisfação de pedidos particulares feitos a camaradas que tinham privado com alguns dos elementos da guarnição. Luvas de cabedal, capotes, papel higiénico, tintas, etc., etc., com a promessa de tudo ser reposto conforme as requisições fossem sendo satisfeitas. Deve ter sido uma situação única na Marinha.
          Quanto mais contrariedades surgiam mais unidos e empenhados ficávamos. Na altura interiorizámos que o “São Miguel” nos conhecia e sabia que tinha em cada elemento da sua guarnição um amigo sincero e preocupado pelo seu bem-estar e apresentação! Viver aquele navio foi realmente uma experiência única. Para ilustrar bem da nossa situação conto uma ocorrência hilariante. Não tenho outra palavra para a classificar…
          Já passava do meio-dia. Estava um dia soalheiro e a maré de enchente. O navio atracado e a guarnição conversava no exterior aguardando a saída do almoço quando sou questionado por telefone onde me encontrava. Informei que estava atracado no Cais do Tabaco e que em breve iríamos almoçar. Do outro lado ouvi risos. Curioso perguntei o que se passava. Na resposta foram-me dizendo que mais tarde falariam comigo e que nesse dia não passasse pelo Ministério como fazia habitualmente.
          Perante a minha insistência para saber da razão do telefonema o meu interlocutor, deixando perceber uma gargalhada abafada, disse-me que reinava grande agitação e consternação na SSM. Queriam saber quem tinha autorizado, sem o seu consentimento e conhecimento, o fornecimento de tinta ao “São Miguel”! Manifestamente agastados exigiam saber quem tinha desrespeitado orientação superior.
          Dispenso-me de tecer comentários sobre a explicação que me deram na manhã seguinte e que refiro já a seguir. A ocorrência teve origem na observação, perto da hora do almoço, por alguém no Ministério que, olhando para o rio, reparou num navio mercante, navegando, todo pintado de cinzento e o identificou como sendo o “São Miguel” já que não havia navios mercantes pintados de cinzento! Da simples observação aliada à “simpatia”, em que o navio era tido, rapidamente foi passada informação a “quem de direito” e a confusão instalou-se… A telefonista já não sabia a quem havia de ligar!
          Quando finalmente houve confirmação de que o navio se encontrava atracado ao “Cais do Tabaco” as “coisas” serenaram. Nesse mesmo dia, da parte da tarde, souberam que o causador de tanto “ruído” era o N/M “Ilha do Porto Santo” que depois dos fabricos, a que fora sugeito e com nova pintura, procedia á calibração de agulhas! Esta caricata ocorrência atesta bem da “boa vontade” que havia para com o “São Miguel”.
          Mais tarde, a 13MAR86 quando o “nosso navio se fez ao mar pela primeira vez” levava a chaminé pintada de cinzento (não havia tinta para mais…) que, contrastando com as restantes cores da CNN onde sobressaía o casco azul, mais parecia ter sido pintada de branco. Era a primeira saída do “São Miguel” para o mar. Toda a guarnição estava entusiasmada e empolgada com o feito. É verdade! Tínhamos conseguido pôr o navio a funcionar, isto é, a navegar contra quase tudo e quase todos...
          A saída para o mar representava para cada um de nós uma vitória pessoal. Para trás ficava muito trabalho, empenho e sacrifícios duma guarnição excepcional para quem a Marinha continuava a ser o seu ideal. Era um grupo disciplinado e coeso, modesto e ciente das suas limitações.
O navio já não nos escondia nada, nem nós… a ele!

6 comentários:

  1. Ora aqui está! Um pequeno - grande - exemplo do que os homens afectos à Marinha de Guerra, fizeram e certamente continuam a fazer! Para a dignificar, mesmo que, contrariando alguns imbecis que sempre acabam por existir, que apenas galvanizam, quem quer e gosta!.. O meu abraço Senhor Comandante.

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    1. Obrigado meu amigo.
      A vida tem destas coisas...
      Um abraço,
      oc.

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  2. Parabéns, Sr. Comandante... parabéns pelo relato que pode (ou deve?) produzir história; parabéns pela equipa que construiu o comandou com o brilho e sucesso que as suas palavras deixam antever.Pena tenho não ter tido a honra de servir sob as suas ordens.
    Os meus respeitosos Cumprimentos.

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    1. Sensibilizado agradeço as suas palavras.
      Um abraço meu amigo,
      oc.

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  3. Caríssimo Comandante Oliveira e Costa,
    Aproveito este espaço e a disponibilidade do amigo Rodrigues Morais, para lhe dizer - sem saber se a primeira viagem do navio foi a Leixões -, ter em meu poder duas fotos do navio neste porto, feitas por mim na ocasião, comprovando o rigor do seu texto, felicitando-o pela ética e profissionalismo, na defesa de um dos navios mais mal amados do comércio e da Marinha.
    Cumprimentos a ambos,
    Reinaldo Delgado

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    1. Obrigado pelas sua palavras. O Dr. Rodrigues Morais teve o cuidado e a amabilidade de me informar do seu trabalho tecendo elogiosa apreciação pela sua dedicação aos navios e de forma especial à fotografia. Bem haja. Julgo já estar em curso uma compilação alargada de diversa documentação sobre o "nosso" navio e onde certamente serão incluídas as fotos existentes. Por enquanto é um desejo veremos se se concretizará.
      Respeitosos cumprimentos, oc.

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