15/10/12

“HISTÓRIAS À VISTA” - 19

          19.ª “HISTÓRIA À VISTA”, na senda das memórias do 1.º Comandante do Navio de Apoio “NRP São Miguel” - CMG REF Oliveira e Costa (1985-1988).
 
MEMÓRIA N.º 5: TANJOEL…???
 
          Tínhamos regressado da nossa 13.ª saída em que lançámos ao mar munições sentenciadas do Exército e da Marinha. Agora, oito dias depois o NRP “São Miguel” saía de novo para participar no exercício “ALBATROZ – 86” como Navio de Apoio Logístico, integrado na Task Force (TF) sob o comando do CMG Luís Joel Azevedo Pascoal embarcado no “NRP S. Gabriel”, que comandava.
          O Comandante Joel era um marinheiro à antiga, sempre impecavelmente fardado, sóbrio, com aquela postura fidalga, observador atento, deixando raramente escapar um modesto e complacente sorriso. No convívio restrito era uma boa companhia, por vezes mordaz e jocosa. Exigente, disciplinado e disciplinador, todos os que com ele privavam lhe guardavam respeito e obediência. Estava bem presente o lema “Conhaque é conhaque; serviço é serviço! ”.
          O Exercício decorreria de 21 a 28JUL86. Nos dois primeiros dias fizeram-se reuniões no Comando Naval do Continente e, a saída dos navios, concretizou-se na manhã do terceiro dia. Levávamos os Fuzileiros que iriam fazer um desembarque na Praia do Pinheiro da Cruz. Próximo do objectivo, passariam do navio para botes Zebro, iniciando-se logo de seguida a operação planeada.
          Além das unidades navais e de Fuzileiros participava, ainda, um helicóptero da Força Aérea. Na véspera da saída, o Mestre, durante uma inspecção ao navio, caiu num porão e traumatizou os dois pulsos. Tratado no Hospital da Marinha foi dispensado de todo o serviço tendo, por isso, ficado em terra.
          Problemas estavam sempre presentes! Os Fuzileiros embarcaram cedo e o navio largou logo de seguida. As “redes de desembarque” não foram embarcadas, como inicialmente previsto, tendo sido informado que as mesmas seriam “entregues” pelo helicóptero, durante o exercício, que as recolheria da “Fracapelo”.
          O número de FZ’s a embarcar só nos foi dado a conhecer na véspera da saída! Às 1030 tivemos de fundear, em S. José de Ribamar, devido ao rebentamento de um encanamento de água salgada. Na altura foi ainda combatido um princípio de incêndio na comutatriz do Radar! Substituído o encanamento levantámos ferro e seguimos ao encontro da TF.
          Ainda não tínhamos saído a Barra quando recebemos da “Fracapelo” o primeiro sinal táctico. Começara o nosso fado pois não nos tinham sido ainda (!) distribuídas quaisquer publicações “sobrevivendo”, o “São Miguel”, da experiência dos Oficiais que, mercê dos muitos exercícios em que participaram, e em especial do Oficial Imediato, iam decifrando com algum à-vontade, a maioria dos sinais tácticos.
          Durante a tarde desse primeiro dia, constatado que só um FZ estava francamente enjoado, situação que não se alterou ao longo de todo o exercício! A Força embarcada trazia um socorrista mas não trazia medicamentos! Para as comunicações visuais dispúnhamos de uma única lanterna ALDIS! Ao final daquela tarde alcançámos a TF.
          O “São Miguel” era um navio lento, com um comportamento suave, doce de leme mas muito sensível ao vento. Com 108 metros de comprimento e 16 de boca, convés subido a ré e fundo chato, com um motor MAN a 2 tempos, directamente reversível, com a potência de 4000 BHP, a 150 RPM, que accionava um hélice, de passo direito, com 5 pás e um diâmetro de 5,6 metros e desenvolvia uma velocidade máxima de 14 nós.
          Na situação de vazio o “Namiguel”, era o nosso indicativo radiotelefónico, calava a ré 5,8 metros e, a vante, 0,56 metros. Para contrariar este “medonho” caímento a ré, decidi que os tanques de combustível estariam sempre cheios ou de combustível ou lastrados com água salgada, decisão que foi uma verdadeira violência para o Engenheiro.
          À velocidade de cruzeiro de 12.5 nós tínhamos uma autonomia de 21 dias. Às 2015 ocupámos, com entusiasmo e alguma vaidade, a posição ZZ. Este primeiro dia de navegação fôra trabalhoso e enervante onde a falta de Publicações nos trazia num stress constante! Eu e o Imediato, alternadamente, ao longo de todo o exercício, permanecemos na ponte. Havia que cuidar do bom nome do navio e da sua guarnição! Sentíamo-nos todos dependentes uns dos outros.
          A actividade operacional (táctica) era intensa e as mensagens, que na sua maioria não interessavam ao navio, não pararam ao longo de todo o dia, sobrecarregando o pessoal, valeu-nos ter ficado, a recepção da Radiodifusão, a cargo da “Fracapelo”. Se o futuro da nossa actividade contemplasse situações semelhantes, às vividas neste dia, então seria da maior oportunidade mandarem, o Comandante e o Imediato, frequentar no CITAN, os cursos a eles destinados!
          Participar num exercício onde as alterações de velocidade se verificavam com alguma frequência era uma “tragédia”, para as executar em tempo, já que não dispúnhamos das características inerentes aos navios de guerra, tornando as manobras pesadas e demoradas. No final deste primeiro dia, de navegação, os FZ’s tinham mantido um comportamento calmo e somente o “enjoado” se mantinha INOP.
          Já ao fim do dia “embarcou” um pombo-correio tendo-lhe sido facultado, perto do local da “aterragem”, um tabuleiro com água doce, uma “atenção” do serviço de manobra! A falta do Mestre, que ficara em terra, foi notória nesse dia e nos restantes. O prometido contentor sanitário não embarcou criando situações desagradáveis entre o pessoal transportado bem como à guarnição!
          Começámos o segundo dia de navegação com bom tempo, poucas nuvens, com vento fraco e mar chão. Mas ninguém parecia interessado naquela paz. Tudo indicava que iria ser, e foi, um dia mais trabalhoso que o anterior! Um desassossego! O nosso passageiro “alado” talvez não entendendo a razão pela incerteza do rumo pretendido, pois que o alterávamos com frequência, perto do meio-dia, recuperadas as forças depois de uma noite “Chez-Nous”, resolveu “desembarcar” seguindo o seu caminho não sem antes ter dado uma volta ao navio em jeito de despedida!
          Foi um dia dedicado a evoluções, formaturas, reabastecimento, alterações de posição, num constante movimento. Era “Corpen” à direita, “Corpen” à esquerda, “Través” 1500 jardas, etc., etc., eu sei lá… e por aí fora sem descanso. Durante um exercício de reabastecimento o Cte. da “Fracapelo”, Cte. Beça Gil, enviou na bóia calção, uma oferta para o Cte. do “Namiguel”, uma caneca para cerveja com o nome da fragata. Caneca que ainda hoje guardo, com alegria e saudade, na minha “Sala de Recordações”.
          Foi um momento de “descompressão”, não só pela amizade manifestada, como pela atenção dada ao navio que parecia continuar a sofrer o ostracismo da Marinha onde tentava, com todas as forças, saber e entusiasmo, mostrar e dizer que também ele e a sua guarnição estavam ali devotadamente, disponíveis para servir com honra, coragem, sacrifício e muita dedicação, no cumprimento das missões e tarefas cometidas à Marinha, numa valência tão necessária: A de um Navio de Apoio Logístico.
          O terceiro dia estava lindo. Mar calmo e vento fraco, embora com tendência para aumentar. O “Tambriel”, indicativo radiotelefónico do NRP “S. Gabriel”, fiscalizava o exercício com “mão de ferro” chamando a atenção sempre que qualquer procedimento não era correctamente executado. As chamadas de atenção ao “São Miguel” também se verificaram.
          Assim eram as chamadas de atenção para a demora em certas manobras (o navio era “lento”!), ou no caminho seguido para a nova posição ou ainda na demora da resposta aos sinais tácticos (eram descodificados “a pedido”!), enfim, reparos que me deixavam com os nervos em franja perante a minha impotência para concretizar, com eficiência, o solicitado.
          Era difícil de aceitar a incompreensão de “Tambriel”. Tínhamos consciência das nossas limitações. Contudo nada podíamos fazer para melhorar a nossa situação na TF. A máquina “entendeu”, face às frequentes alterações, nas rotações, que não estava a ser considerada com a dignidade devida e resolveu “ir abaixo” mais de uma vez! Para “ajudar à missa”, a “táctica”, mantinha-se num nível de execução alto! Não tínhamos ETO nem megafone e, se não houvesse cuidado, o mais natural seria começarem todos aos gritos!
          No início dessa manhã, estávamos a 80 milhas a W de Sines, o Marinheiro Parreira apanhou outro pombo mas este resolveu “sair” pouco depois! Perto da hora do almoço o Helicóptero foi à vertical, da popa do navio, para depositar as redes de desembarque, que fora buscar à Fragata. Não fez o serviço devido aos paus de carga do navio.
          Diziam eles que tínhamos “muito lixo”! Eles é que tinham muito lixo, e era na cabeça! Em 1974, na Guiné, os nossos helicópteros, se fosse preciso, aterravam nos cornos de uma cabra! Agora na popa do “São Miguel” não podiam arriar um molho de redes de desembarque porque tínhamos “muito lixo”! As redes foram então levadas e deixadas na “Corenes” que as enviou, ainda nesse dia, em botes Zebro.
          Depois da faina das redes a máquina tornou a não arrancar devido a problemas na Placa Ejectora que já tinha sido substituída, quando da ida a Portimão, na nossa 1ª saída para o mar, em 13MAR86. Para desanuviar, da parte da tarde deste terceiro dia, foi ensaiada e cheia, pela primeira vez, a piscina engendrada com uma capa de lona que fixaram por ante-a-ré da tampa do porão nº 2.
          As manobras decorriam normalmente e encadeadas umas nas outras. Não havia tréguas! A nova manobra implicava, naturalmente, alteração de posição e de velocidade, novas mensagens, sinais por bandeiras e todo um rosário de ordens e procedimentos, exigindo-nos redobrada atenção no movimento do nosso navio e dos outros que se encontravam mais próximos.
          Era um “bailado” digno de se ver com o helicóptero, evoluindo sobre a força, levando material diverso entre os navios. Era bonito de se ver as outras unidades a evoluírem graciosa e harmoniosamente. O “São Miguel”, qual patinho feio, seguia “em esforço e em stress” para a sua nova posição, reportando de imediato e com entusiasmo quando a alcançava. Não raramente seguida duma chamada de atenção, na fonia, pelo Comandante da TF, a que se respondia com um seco, cansado e sem jeito “Roger Out”.
          Neste frenesim, e na sequência de mais uma chamada de atenção, o Imediato com graça e na sua habitual boa disposição, que tão bem o caracterizam, disse:
- “Este Tanjoel não nos larga…”.
          Embalado, pelo inédito e inopinado dito, logo respondi com um sorriso:
- “TANJOEL, TANJOEL AQUI NAMIGUEL, ROGER OUT”.
          Claro que, na sequência, foi recebida uma lacónica mensagem convidando-me para um “drink” na camarinha do Cte. do NRP “S. Gabriel” logo após o “debriefing” a realizar no Posto de Comando dos FZ’s, na Praia do Pinheiro da Cruz… Na madrugada do terceiro dia já o vento tinha refrescado bastante e na madrugada do quarto dia já estava de moderado a fresco dificultando o posicionamento do navio para o desembarque dos FZ’s.
          Fundeámos às 0735 com 4 qq. na posição determinada (140/.65 Farol da Ponta do Cais). Colocámos as redes de desembarque em posição e verificámos que não tinham altura suficiente pelo que foram casadas, e mesmo assim não chegavam ao lume de água, pelo que o pessoal tinha de se deixar cair, para os botes, originando situações de insegurança agravadas pela mareta e pelo rabear do navio devido ao intenso vento que se fazia sentir! Havia ainda muito que aprender!
          O quinto e sexto dia foram passados naquele fundeadouro, desabrigado, com previsão de saída para o oitavo dia (28JUL86). Devido ao vento que se fazia sentir, e ao rabear do navio, passámos a 6 qq. no escovém. No dia 27JUL às 1200, a convite dos FZ’s, assistimos ao “debriefing” no Posto de Comando na Praia do Pinheiro da Cruz para, logo a seguir, ir ao “S. Gabriel”, acompanhando o seu Comandante, tomar um “drink” conforme “convite nominal” anteriormente feito!
          Na requintada camarinha do “S. Gabriel”, depois de um resumido esclarecimento, sobre a nossa situação e das limitações no armamento do navio, reduzindo de forma dástrica a nossa capacidade para participar em exercícios daquele tipo, tudo ficou esclarecido não sem algum esforço… de ambas as partes!
          À tarde, eu e o Imediato, fomos jantar a bordo da “Fracapelo” a convite do seu Comandante. Durante a noite o vento caiu de forma sensível e às 0530 chegava a 1ª de várias levas de FZ’s que rapidamente, e sem novidade, reembarcaram.
          Às 0630 constatou-se que acabara tudo o que havia à mostra nas Copas! Passada a azáfama e o burburinho, próprios de um reembarque, o pessoal dispersou e “encostou para ferrar uma merecida baderna”. Terminado o reembarque levantámos ferro e seguimos para Lisboa atracando à Doca da Marinha em 281730JUL86. O “ALBATROZ – 86” terminara…
 
Um respeitoso e amigo abraço Sr. Almirante.

4 comentários:

  1. Seria da minha parte injusto tecer um comentário, por mais elaborado que fosse, a este (que classifico de) Diário de Bordo e deixá-lo para aqui escondido onde poucos viriam para o ler. Assim, pensei, julgo que assisadamente, dar a este tema (BARCO À VISTA) uma maior visibiliade e relevo, pois são relatos destes que ajudam a perceber melhor a Marinha, quer aos que a tenham servido, a sirvam ainda ou nunca a venham a servir.

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  2. Meu amigo. A vida de Marinha preenche completamente quem teve a felicidade de a abraçar um dia.
    O seu comentário fez-me "sentir" o cheiro da maresia, ou da humidade da terra, aos primeiros alvores!
    Obrigado,
    oc.

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  3. Faltou-me dizer no comentário que deixei, por lapso de memória, que optei por considerações mais alargadas em blogue, o que já fiz.
    Peço desculpa.

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  4. Obrigado meu amigo fiquei sensibilizado.
    Um abraço,
    oc.

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