Navegando por novos rumos, passo a apresentar-vos as “HISTÓRIAS À VISTA”, transcrição de narrações cedidas gentilmente por militares da Armada na situação de ACT / RES / REF, as quais utilizei como fonte na redacção de artigos neste blog.
Começo por transcrever um excerto do futuro livro de memórias “Lago Niassa 1963-1966” do Oficial de Marinha CMG Ribeiro Zilhão (REF), que versa sobre as suas duas comissões seguidas na Base Naval de Metangula, junto ao Lago Niassa – Moçambique.
Este Oficial teve a particularidade de, com a patente de 1º Tenente, ter sido o 1.º Comandante do Comando de Defesa Marítima dos Portos do Lago Niassa, cumulativamente com o cargo de Capitão do Porto da Capitania dos Portos do Lago Niassa e 1.º Comandante da Lancha de Fiscalização Pequena P580 "Castor".
Esta 1.ª “HISTÓRIA À VISTA”, versa sobre a 1º viagem da LDM 404 “Chipa” à localidade de Chipoka no Malawi, junto ao Lago Niassa:
«Na primeira viagem tudo começou mal quando não deram tempo para se pintar a LDM de outra cor. Não sei porquê, o nervosismo do Chefe do Estado-Maior do Comando, Cten Moreira Rato Barreiros era enorme, querendo que largássemos o mais depressa possível fosse como fosse.
Contra a minha opinião, saímos com a LDM ainda de cinzento (só lhe havíamos tapado os números, que mesmo assim se distinguiam perfeitamente). Tinha portanto, todo o aspecto de uma Lancha de Desembarque Militar. Embarcava também o 1º Ten EMN Rabaça Pires, uma vez que existiam problemas técnicos de bombagem (por exemplo, de adaptadores), a serem resolvidos em Chipoka com os elementos de ligação que nos aguardavam (e que mais não eram que homens do Jorge Jardim).
O único cunho civil da LDM era ter hasteado a bandeira amarela da Sonarep, organização que tinha ligações empresariais com a sua congénere no Malawi: a Oilcom, (ao fim e ao cabo, ambas ramificações da Sonap). Por outro lado, íamos à paisana e vestíamos os casacos amarelos dos funcionários da Sonarep. Esclareci todo o pessoal que em Chipoka não me deviam tratar por Comandante, mas sim por "Mestre", pois tudo se passava como se fossemos empregados da Sonarep, sendo eu o Mestre da "barcaça -tanque".
Também contra a minha opinião, o Comandante da Base, CFR Costa Pereira quis que eu levasse armas (G3's e granadas de mão):
-"Para o que der e vier"- dizia...
Eu não concordava, pois entendia que em caso de sermos detidos, as armas só nos poderiam criar problemas.
Largámos de Metangula numa tarde em princípios de Abril de 1966, tendo navegado directamente para Chipoka, onde atracámos na manhã seguinte. Pouco minutos depois, o cais era invadido por uma multidão de negros. Brancos nem um. Os delegados do Jorge Jardim ainda não tinham chegado. Apareceu a Polícia do Porto, entre eles o chefe que tinha uma farda que mais parecia uma vestimenta de opereta, tantas eram as cores.
Expliquei ao que vinha, mas ele não tinha quaisquer instruções. Informou-me multo delicadamente que não poderíamos usar o rádio, que nos devíamos manter na lancha e pediu licença para a população visitar a Lancha (o que autorizei). Em seguida, colocou um homem seu à prancha.
Desembarquei com ele e fui a casa do Capitão do Porto (harbour master), que era um inglês. Segundo o Comandante da Polícia me disse, ele raramente saia de casa e pela tarde estava sempre bêbado. Ou porque de nada sabia, ou porque sabia demais, não deu um passo para nos ajudar.
Por fim lá apareceram os dois homens do Jorge Jardim (o Pombeiro e o Moreira Rato) e começámos a trabalhar. Porque existiam vários problemas com as ligações das mangueiras, o Rabaça foi para a Estação de Bombagem tratar do caso, ficando eu a bordo no meio duma imensa multidão que corria de lés a lés a pequena LDM.
Cumpre aqui explicar que Chipoka era uma pequena mas pitoresca vitória, com várias dezenas de casas, ruas em terra batida, algumas lojas comerciais e um razoável mercado (sobretudo por comparação com Metangula que, para além de uma cantina, nada mais tinha...).
Em determinada altura, ouço em português com nítido sotaque nianja:
-"Bom Dia, Senhor Comandante!".
Olhei a pessoa que me falava todo salamaleques. Era um tipo que vivia no N'go e fugira para o Malawi. Lá lhe consegui explicar que já não era Comandante da Marinha e agora trabalhava na vida civil como Mestre daquele navio. Sorrindo, disse:
- "Estar descansado, Eu não dizer nada. Eu conhecer bem Senhor Comandante, ser boa pessoa. Eu não querer guerra, por isso vir para aqui para não ser chateado por Frelimo e por tropa. Quando portugueses resolverem a guerra, eu voltar p'ra minha terra".
E lá se perdeu na multidão para meu alívio.
Esclareça-se que ninguém a bordo levava um único documento que nos identificasse, Ainda se pensou em se preparar falsas cédulas pessoais de Marinheiro, mas não houve tempo. E, para cúmulo dos cúmulos, a própria Lancha não possuía qualquer documento que a legalizasse (o que me iria dar problemas pouco depois).
Pela hora do almoço, vinha eu da Estação de Bombagem - que ficava a uns 500 metros do cais - um Polícia cruza-se comigo e pede-me para o acompanhar à Esquadra, pois o Chefe queria falar comigo. Lá fui… e fiquei logo detido! Explicou-me que da capital, ninguém sabia da nossa ida, nem quem éramos. E embora tivesse a certeza tratar-se de um lapso, a bombagem não podia começar e eu teria que ficar detido até a coisa se esclarecer.
Foi então que tive a ideia luminosa de o convidar para almoçar a bordo juntamente com os seus dois auxiliares, argumentando com um belíssimo bacalhau cozido regado com bom tinto. Acrescentei que, enquanto o caso se esclarecia, tanto fazia eu estar ali com ele, ou na Lancha a comermos. Aceitou. Durante o almoço um dos colaboradores do Jardim tratou de se mexer para que viesse o esclarecimento.
Pela tarde tudo se esclareceu, mas só poderíamos começar a bombear o combustível para bordo no dia seguinte, pois havia um problema de adaptadores que só chegavam na manhã seguinte. Decidimos pois pernoitar no Porto.
O Chefe da Polícia - que entretanto se tornara nosso amigo, não só porque eu lhe oferecera um garrafão de vinho (tivera o cuidado de trazer uns mimos para representação), mas também porque o esclarecimento viera directamente do Gabinete do Ministro Banda, irmão do Presidente da República - sugeriu-nos (a mim e ao 1º Ten EMN Rabaça) que em vez de dormirmos mal instalados na LDM, fossemos até Palm Beach, estância balnear a cerca de 30 milhas para Norte e que ainda mantinha parte do esplendor do tempo dos ingleses. E até telefonou para o Hotel a avisar da nossa ida!
E assim fizemos. Na Estação de comboios de Chipoka, que ficava perto do Porto, metemo-nos num ronceiro comboio (como se vê para além de um Porto, tinha comboio coisa que nem Metangula ou Vila Cabral tinham).
Aqui viveria pela primeira vez o racismo com sinal contrário. Quando o revisor chegou, chamou-nos à atenção que não podíamos ir naquela carruagem, pois a carruagem dos brancos era a última. Lá nos desculpámos, tendo ele, perante o nosso inglês, perguntado de onde éramos. Quando informámos que éramos portugueses e lhe contámos o que estávamos ali a fazer, sorriu e disse que podíamos ficar na carruagem. Ainda hoje não sei se devíamos ter ficado deleitados ou ofendidos com a atenção...
Já noite, chegámos à Estação Ferroviária que servia Palm Beach. Era um sítio ermo, com meia dúzia de casas envoltas numa escuridão quase total. Tínhamos que arranjar um transporte que nos levasse ao Hotel, a cerca de cinco quilómetros. Sem hesitar, dirigimo-nos à Esquadra da Polícia, perguntando onde poderíamos arranjar um carro que nos levasse a Palm Beach. O Chefe da Esquadra olhou-nos com desconfiança (não havia um branco nas redondezas), perguntando-nos quem éramos e o que estávamos ali a fazer. Lá repetimos a lengalenga do costume; mas ele continuava cheio de dúvidas que aumentaram quando constatou que não tínhamos um único documento de identificação.
Quando começámos a ver a vida a andar para trás, tive a ideia luminosa de lhe sugerir que telefonasse ao seu colega em Chipoka. Assim fez e à medida que falavam, via o seu sorriso alargar-se. Acabou ele mesmo por telefonar ao Gerente do Hotel que veio pessoalmente buscar-nos. E, surpresa! O Gerente do Hotel era português...
Já no Hotel, ofereceu-nos um opíparo jantar regado com um tinto "Chateauneuf du Pape" e dormimos num excelente "bungalow" (pequenos flats circulares com duas camas e WC, e com o tecto de colmo, situados numa bela praia, cheia de frondosas árvores. Peio facto de serem circulares, estes flats eram conhecidas na gíria de Moçambique, por "rondáveis").
Regressámos na manhã seguinte sem problemas. Durante o dia fizemos finalmente a bombagem para a LDM e largámos pela tarde com muitos "adeuses" em terra. Estava um vento e uma ondulação Norte dos diabos. Com o peso das 36 toneladas de combustível que levávamos nos tanques do poço, a porta da frente mergulhava na vaga e a lancha começou a embarcar água, mesmo a despeito de lhe ter reduzido a velocidade.
Estava a pensar em voltar para trás, pois a vaga parecia não querer diminuir, quando passámos frente do Hotel de Palm Beach. Tive então a ideia de abicar à praia e aí passarmos a noite, retomando a viagem de regresso no dia seguinte. Fomos ter com o Gerente, que nos recebeu com a sua habitual simpatia e nos cedeu o mesmo alojamento da noite anterior, convidando-nos para jantar.
Fomos para o rondável para nos arranjarmos. Depois de eu ter tomado um belíssimo banho, e estando o Rabaça no banheiro, apareceu o Marinheiro Artilheiro Cortinhas, muito excitado e acompanhado de um Soldado do Malawi armado, dizendo-me que a LDM estava cercada por militares armados e que era melhor eu lá ir com urgência.
Com a calma que os incidentes das últimas vinte e quatro horas tinham criado, virei-me para o Rabaça e disse-lhe:
- "Acaba o teu banho que eu vou lá e resolvo o assunto numa penada".
Quando cheguei à LDM e um Soldado com ar feroz me encostou uma pistola-metralhadora à barriga, tive logo a percepção que o assunto era mesmo grave. Por toda a Lancha deambulavam tipos armados e o meu pessoal estava a um canto com um tipo apontando-lhes uma arma. O Comandante da força chamou-me e fez-me uma série de perguntas a que respondi com o discurso habitual. Mandou um Soldado telefonar para a cidade para confirmar a minha informação, não ligando à minha sugestão de ligar para a Polícia de Chipoka.
- "We are military, not police"- respondeu com a cara fechada.
Em seguida exigiu revistar o navio levando consigo uma Praça nossa para lhe ir abrindo tudo. Felizmente, a revista começou pela Casa das Máquinas, onde tudo foi aberto ao pormenor e perguntado para que servia. Eu aguardava dentro da Casa do Leme com um tipo de arma aperrada, apontada.
Ao fim de uma hora, começaram a revista na Casa do Leme e aqui comecei a sofrer. Todas as armas que trazíamos (G3's e granadas de mão) estavam metidas debaixo do xadrez que cobria o chão da cabine. Com um pouco de atenção, olhando-se pelos buracos do xadrez até se podia adivinhar o seu brilho característico.
O Comandante da força começou por revistar o armário que estava mesmo sobre a zona do xadrez onde estavam as armas. Mandava retirar item a item perguntando para que servia. Estávamos dentro da cabine: o Comandante da força, um auxiliar seu, eu e um Marinheiro nosso, que retirava os itens.
O Marinheiro Artilheiro Cortinhas estava à porta da cabine. No exterior, estavam os outros Marinheiros, com dois guardas a vigiá-los. Os restantes três ou quatro militares do Malawi estavam na praia, frente à Lancha. Esperando a todo o momento que ele mandasse levantar o xadrez, pus um cigarro na boca e com ar despreocupado, como quem pede lume, disse para o Cortinhas e para o outro Marinheiro que estava na cabine:
- “Se o gajo descobrir as armas, anulamos estes tipos de imediato. Tu passas-me duas granadas de mão para atirar para a praia. E tu, Cortinhas, como quem vai pedir fósforos, avisa já os outros lá fora para proceder sem hesitações logo que nos virem actuar na cabine. Arrancamos com os motores e piramo-nos".
Era tremendamente arriscado, mas era a única solução, pois o que eu de certeza não queria era que nós, ou a LDM, caíssemos na posse deles. Preocupava-me o Rabaça, mas como ninguém sabia da sua existência, ele desenrascar-se-ia com o Gerente do Hotel.
Felizmente na última prateleira estavam medicamentos que o Comandante da força quis analisar um a um com cuidados especiais (talvez desconfiando que fossem drogas). Estávamos neste ínterim, quando apareceu o Gerente do Hotel que fora ao rondável buscar-nos para jantarmos e a quem o Rabaça contara o que se estava passando. Desatou aos berros com o Comandante da força dizendo quem nós éramos, que o Governo do Malawi estava a par da nossa missão e que ia jâ telefonar ao seu amigo ministro Banda contando tudo.
O Comandante esmoreceu um pouco e lá explicou que estavam ali porque tinham recebido um telefonema na sua Base de uma senhora que estava hospedada no Hotel a dizer que uma Lancha de Desembarque Militar tinha varado à praia com adeptos do Chipembere (era o candidato da oposição ao Presidente Banda, que estava exilado e todos temiam que viesse tomar o poder, apoiado por mercenários).
Logo ali a história se clarificou: uma velhinha inglesa, hóspede no Hotel, estava na varanda virada para a praia, deliciando-se com o pôr-do-sol, quando viu uma Lancha de Desembarque pintada de cinzento abicar à praia. Nem quis ver mais nada: histérica, agarrou no telefone e alertou a Base Militar mais próxima.
Face à intervenção do Gerente, o Comandante da força militar parou a revista e todos saíram da Lancha. Obrigou-me no entanto a garantir que não tentaria fugir sem o caso estar devidamente esclarecido, tendo ido para terra tirar informações, mas deixando o seu pessoal armado de guarda na praia, frente à Lancha.
Acabámos a noite jantando opiparamente com o Gerente do Hotel. Eu só pensava no calafrio que ele teria se, depois daquele berreiro todo, soubesse a verdade. A realidade é que ele julgava mesmo que nós éramos funcionários da Sonarep e que o combustível se destinava à cidade de Vila Cabral.
Quando contei ao Rabaça o que eu tinha pensado fazer em emergência, desatou a rir e contou-me a sua sequência de pensamentos. Como eu nunca mais aparecia, ele viera para a praia espiar, por detrás de uma árvore. Quando começou a aperceber-se de que a coisa estava complicada e que me podiam levar preso, arquitectou um plano para depois entrar na Lancha e levá-la para Metangula. A sorte de tudo, fora o Gerente do Hotel que não nos vendo aparecer para jantar, fora ao rondável saber o que se passava...
Claro que já não dormimos no rondável, pois não só não íamos abandonar o pessoal sozinho como, por outro lado, eu estava ansioso em fazer desaparecer o material de guerra, não fosse a coisa dar para o torto na manhã seguinte. Assim, logo que chegámos a bordo, noite escura, eu e o Rabaça, debaixo das lonas que cobriam os tanques de combustível, abrimos cautelosamente a porta de visita de um tanque (no silêncio das noites africanas qualquer barulho alertaria o pessoal em terra) e metemos no fundo todas as armas e munições.
Lembro-me de que quando a porta se abriu, por efeito do ar, saiu uma imensa golfada de combustível que nos sujou todos de gasóleo. E fechámos de novo o tanque.
No dia seguinte pela manhã já tudo estava clarificado e depois de várias desculpas da praxe na presença do Director do Hotel, foi-nos finalmente autorizado seguir viagem.»
NOTA:
Artigo sobre a LDM 404 "CHIPA"
Tive o prazer de conviver com o Comandante Zilhão, durante o último trimestre de 1964, quando começaram as complicações com a Frelimo.
ResponderEliminarE a pequena lancha Castor era como um verdadeiro iate naquele fim de mundo!
"Estória" característica do desenrascanço dos nossos marinheiros!
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