08/09/13

HISTÓRIA À VISTA - 32

          HISTÓRIA À VISTA N.º 32, da autoria do 1.º Comandante do Navio de Apoio “NRP São Miguel” - CMG REF Oliveira e Costa (1985-1988), versando sobre a estadia nos EUA.

MEMÓRIA n.º 12: “ …e onde levam o dinheiro?

          Deu para entender que a nossa curta estadia no MOTBAY iria ser muito movimentada. Parecia que havia electricidade no ar. Tudo se fazia depressa como se tivessem medo de que o dia ia acabar antes das tradicionais 24 horas! Só destoava deste granel organizado o pessoal de serviço que ia cumprindo as tarefas cometidas. Desde que atracámos muitas pessoas passavam junto do navio e, se houvesse alguém a bordo à vista e capaz de os ouvir, era certo e sabido que metiam conversa em português, claro!
          O NRP “São Miguel” parecia que tinha mel… Julgo que ao longo daqueles quatro dias houve sempre gente à amurada respondendo a terra, antes de entrarem a bordo, pois quando possível, eram convidados a subir. Uma constante, em todos os Portos onde passámos, durante a viagem. Era indescritível o bem-estar e a alegria manifestada por aqueles que nos visitavam…
          A “Navy” pôs ao nosso dispor um carro descaracterizado, com condutor militar, que aproveitámos para as nossas deslocações a Newark e a Nova York. Na “Big Apple” fomos ao Banco Totta na “downtown”, fomos ver as últimas novidades em novas tecnologias na loja da Berta, uma brasileira grande, simpática, faladora e de muito bom humor que afirmava ter nas tripulações da TAP os seus maiores amigos e clientes, ficando para depois, quando possível, os passeios a pé pela “Broadway” e pela baixa da cidade não esquecendo de visitar algumas lojas da Rua 42!
          Os compromissos oficiais não nos deixavam muito tempo livre. O tempo tinha de ser bem gerido. Passeei por diversas ruas de Newark, já ao fim do dia, onde a maioria dos residentes são portugueses oriundos de Ílhavo. Nas ruas, àquela hora, poucos eram os carros que passavam já que a maioria dos residentes se tinha recolhido às suas casas.
          No dia seguinte às seis da manhã já muitos estavam na rua, a caminho do emprego! Em Manhattan, numa das idas, fiquei sozinho e “a pé” por duas horas. Comi um “hot dog” comprado numa carrinha de venda ambulante e passeando pela estação dos ferries, com inusitado movimento de pessoas, reparei que o preço da passagem e visita à Estátua da Liberdade era de 25 dólares enquanto o ferry para Brooklyn, que me deu ideia de passar também pela Estátua, era somente de 2,5. “Feito chico esperto” nem pensei duas vezes.
          Comprei o bilhete de $2,5 e embarquei! O “ferry” largou e passou ao largo da Estátua mas… nela não parou! Ri-me da minha esperteza saloia! E ainda hoje me rio sempre que algo me faz recordar este episódio. Chegado ao fim da viagem não desembarquei e continuei sentado, gozando o sol, para dez minutos depois reiniciar a viagem de regresso ao terminal na “downtown” e passando novamente ao largo da Estátua! Claro está que, a bordo, não contei a ninguém!
          Durante a viagem de retorno pensei se não seria o meu “Karma dos cacilheiros”… e recordei com um saudoso sorriso uma outra cena passada nos meus tempos de Guarda-Marinha. Em Cacilhas, juntamente com o Padre Melo, “apanhámos” o cacilheiro para Lisboa, subimos a escada e sentámo-nos logo na bancada circular à popa. Logo depois embarcava um grupo de Oficiais que saudaram o Padre Melo tendo um deles vindo cumprimentar, com um aperto de mão, o Capelão. De seguida pôs a mão em cima da minha cabeça e esfregou-me os cabelos, numa atitude paternal, dizendo:
- “Olá estás bom?”.
          Sem me dirigir o olhar nem aguardando qualquer resposta regressou de seguida ao grupo que deixara. Nada disse ao Padre Melo mas soube tratar-se do Comandante Fausto Melo Águia. Mais tarde andámos embarcados, os três, na Sagres. Estes dois episódios recordo-os, com saudade, sempre que vejo cacilheiros e dos dois me rio igualmente com vontade interiorizando o que, na altura, qualquer um deles representou para mim!
          Na tarde do segundo dia, em MOTBAY, oferecemos a bordo uma Recepção tendo sido convidadas autoridades portuárias, navais e da Guarda Costeira, presidentes das Associações Portuguesas, sediadas em Newark, bem como muitos portugueses e luso-americanos ali residentes.
          Tivemos igualmente a companhia do Comandante Carlos Souto, Adido de Defesa, e da mulher Brenda Souto, do Comandante Carneiro Vieira, do Comandante Aires Moura Domingues, Chefe da Delegação em Washington da Missão para a Construção das FF CL. Vasco da Gama, e da mulher Lurdes Domingues, do Comandante Bossa Dionísio, Adjunto do Cte. Moura Domingues, na Delegação das FF CL. Vasco da Gama, e da mulher Francisca Dionísio, que muito contribuíram para o êxito daquele evento social.
          Da Ponte, onde iam sendo “acolhidos” os convidados, via-se perfeitamente o elevado número de pessoas que iam entrando no NRP “São Miguel”. Os portugueses faziam-se acompanhar dos familiares mais próximos proporcionando-nos a grata possibilidade de partilhar a alegria, que exuberantemente mostravam, de pisarem solo nacional, falando português, e comunicando, para o convívio, muito do que de mais sagrado traziam no peito, “mantendo-os vivos”, fora do seu torrão natal.
          A bordo, dos privilegiados ouvintes, ninguém ficou insensível aos sentimentos expressos. Os convidados com “carga oficial” mantinham-se na Ponte. Os restantes estendiam-se pelo navio percorrendo-o, da proa à popa, num feliz corrupio, tagarelando continuamente! As raparigas luso-americanas iam interpelando, em português, todos os que se cruzavam no seu caminho. Garridamente vestidas, alegravam a recepção com ruidosas gargalhadas, e, tirando fotografias, não davam tréguas ao pessoal mais jovem da guarnição que, uma vez “capturado”, tinha de posar para “o retrato” por vezes em diferentes locais do navio! Estes, sorridentes, estiveram sempre disponíveis!
          Na Ponte iam sendo servidas bebidas e distribuído o “nosso” tradicional, e mandatório, Bacalhau à Brás a que não faltava as tradicionais azeitonas pretas e salsa picada. O Despenseiro, cabo TFD João Carrapeto, e o Oficial Chefe do Serviço de Abastecimento, 1º Ten. AN Júlio Soares Lopes quais duas bênçãos caídas do céu, cuidavam do êxito da Recepção. O primeiro, zelosamente, desdobrava-se entre a cozinha e a Ponte ora servindo ora coordenando o pessoal da taifa e o segundo supervisionando, orientando e recuperando de situações menos conseguidas naquela cerimónia.
          A eficiência sentia-se e os convivas disso davam conta desdobrando-se em elogios e agradecimentos. A Recepção foi um verdadeiro sucesso! Da cozinha iam saindo travessas atrás de travessas! No início o caminho para a Ponte fazia-se com facilidade mas, pouco tempo passado, começou a ser um percurso de ”difícil escoamento” reduzindo de forma drástica o “abastecimento das vitualhas” à Ponte!
          Foi então que o despenseiro veio ter comigo com uma cara denotando preocupação. Nem o deixei falar dizendo-lhe que não havia problema pois os convidados não tinham vindo para comer! Mentira piedosa pois se mais bacalhau houvesse mais comeriam! Com um desmaiado sorriso regressou! Na asa da Ponte a BB, e a ré, foi colocada um barril de vinho tinto, assente no seu descanso, havendo sempre alguém por perto, e disponível, para “ensinar” como se recolhia o precioso néctar.
          Muitos foram os que pela primeira vez manusearam uma delicada torneira de madeira, tornando-se exímios na sua operação! A postura respeitosa, reverente e cerimoniosa praticada no início da Recepção perdeu a rigidez dando lugar, facilmente, a um encontro de amigos onde todos se respeitavam. As diferenças culturais, tão especificamente visíveis, nivelaram-se natural e espontaneamente, por todos, militares e civis.
          O “Encantamento da Saudade” era a essência que a todos envolvia intensa e amorosamente. Da saída dos convidados guardo dois momentos. O primeiro quando um dos Oficiais da Guarda Costeira depois de cumprimentar militarmente voltou atrás e deu-me um caloroso aperto de mão dizendo:
- “Keep it running. Good luck…”, olhando apreciativamente para o navio enquanto me dizia estas palavras.
          Considerei um elogio e tive a percepção de que ele deveria estar “a viver”, profissionalmente, uma situação paralela ou saíra recentemente de uma idêntica, ou então uma que vivera e nele ficara impressa para o resto da sua vida.
          Enquanto descia a prancha, deixando o NRP “São Miguel”, desejei-lhe sorte e força para desfrutar da vida de marinha que ainda tinha pela frente. O segundo foi quando a Lurdes, mulher do Cte. Moura Domingues, nossos afilhados de casamento, sempre presentes, ao despedir-se, já na prancha, disse-me em voz baixa de forma a só eu o entender:
- “corta isso que não te fica bem”.
          Desde que saíra de Lisboa que não fizera a barba e tencionava deixá-la crescer ao longo da viagem. Um marinheirão à antiga! Com duas semanas estava pequena e embora me incomodasse bastante, principalmente no pescoço, aguentava com estoicismo! Claro que, ainda nesse mesmo dia, na primeira oportunidade, fui cortá-la. A minha vaidade sofrera mais um rude golpe…
          Outro ponto alto da nossa passagem pelos EUA foi a inclusão das fotos, nos ficheiros do FBI, de alguns Oficiais da guarnição do NRP “São Miguel”! Julgo que serão poucos os Oficiais que se podem gabar ou exibir tal afirmação!
          Na manhã do 3.º dia, bem cedo, fomos ao Banco (Totta) em Manhattan. Informou-se o condutor e “metidos” no trânsito fomos de N. Jersey para a “downtown” de Manhattan. Estacionado o carro, dirigimo-nos ao Banco e entrámos ainda antes das oito horas. Enquanto me dirigia ao guichet o Ten. Soares Lopes e o Dr. João Pires ficaram à-vontade no sóbrio, espaçoso e sumptuoso átrio.
          No guichet entreguei os documentos à sorridente empregada. Começou a lê-los com um largo sorriso para depois, de reler o documento, me olhar de forma estranha, pondo a mão sobre a boca, e falando para o balcão, quase de forma imperceptível não me deixando entender o que dizia. A funcionária aparentava algum nervosismo e os seus olhos varriam todo o átrio de forma inquisidora.
          Não conseguindo entendê-la nem tão pouco o Dr., que se juntara a mim entretanto, chamei o Soares Lopes e pedi-lhe para ver se a entendia. Como por magia a comunicação entre os dois parecia fluir normalmente. Após um pequeno compasso de espera voltou com um sorriso, para junto de nós, dizendo que teríamos de esperar pois o Banco tinha necessidade de efectuar certos procedimentos. Notámos movimento de homens que se colocaram na porta principal e junto das altas e elegantes janelas ogivais, de vitral, que iluminavam o sumptuoso átrio.
          A funcionária elegeu, o “nosso” Chefe do Serviço de Abastecimento, como seu interlocutor privilegiado e com ele ia dialogando e mantendo-o ao corrente da situação! Primeiro queria saber para quê tanto dinheiro vivo? Depois de esclarecida perguntou onde o levava tendo de imediato o Soares Lopes respondido:
- “in this small bag” levantando no momento, e à altura do guichet, um pequeno saco de viagem de cor azul!
          A funcionária ia mantendo contacto telefónico com alguém que deveria estar a controlar a nossa presença… Para o Soares Lopes perante a tardia satisfação do nosso pedido dirigiu-se à “sua conexão bancária” inquirindo se havia mais algum problema com a requisição de fundos. “Que não. Estava tudo em ordem”, só que tão “large amount” (perto de trinta e um mil contos em dólares americanos) fora inicialmente relacionado com negócios de tráfico de armas, droga ou de pessoas originando, automaticamente, a informação ao FBI.
          Acalmados os ânimos, confirmada a veracidade da documentação e transmitida uma esfarrapada desculpa o saco passou pelo guichet vazio e… regressou cheio pela mesma via! Aliás o Banco já tinha implementado a sua segurança, através de pessoal distribuído pelo Hall, e o FBI já estava no Banco. Informaram o Soares Lopes de que só teriam segurança no interior do Banco e que cessaria logo dele saíssem! Chamaram o condutor e informaram-no igualmente da situação.
          Lembro-me, nesta altura, de ver o Dr. em contra luz fora da porta principal, a filmar descontraidamente, como se nada estivesse a acontecer! Com o dinheiro no saco saímos, a pé, para o carro, já passava das 1300. Quando o condutor ficou ao volante informou que iria seguir por um trajecto mais longo utilizando outra ponte para “fugir” ao trânsito. Conduziu numa velocidade acima do andamento que levara de manhã. Chegados ao navio, saiu do carro e abrindo as portas ia-nos cumprimentando, um a um, como se tivesse saído de um grande percalço!
          Julgo ser de juntar aqui, não vá esquecer-me, de mais uma cena jocosa e ridícula relacionada com o dinheiro levantado nos EUA, conforme orientação da SSF. Não houve uma ordem nem instrução formal para levar os U$D, “poupados” na viagem, para Lisboa. Contudo estava subentendido o acolhimento favorável do saldo nessa divisa no final da missão. Quando o dólar entrou num terrível plano inclinado sucederam-se as comunicações no sentido de “pagar o máximo”, se não a totalidade das despesas, incluindo "a de compelir" a guarnição a receber o subsídio de embarque.
          Este último desiderato foi “desagradável” até na forma como foi requerido pela SSF. O drama era que a guarnição não tinha onde gastar o dinheiro, porque ou ficava a bordo ou, indo para terra, só se fosse gastá-lo em artesanato. Por outro lado, em relação ao navio não se conseguia que os encargos portuários fossem facturados antes da saída.
          Esta situação foi ainda “agravada” pelo encurtamento, em cerca de três semanas, da estadia em Moçambique, reduzindo o tempo da missão naquele país. A 17SET, depois do jantar, o NRP “São Miguel” largou do MOTBAY. Deixámos saudades e muitos amigos na sua maioria “Filhos da Escola”, agora residentes em Newark.
          Levávamos a mágoa de não termos carregado as previstas duas mil toneladas de oferta da Ordem Soberana de Malta ao povo moçambicano mas esse assunto transcendia-nos. O tempo estava a piorar francamente e a previsão era de chuva forte e trovoadas, quanto baste… como se verificou logo durante essa noite.
          O navio e a sua guarnição continuavam de boa saúde e sem sobressaltos. Íamos para o Brasil, Fortaleza, e o pessoal começou a estudar o itinerário…a música brasileira já se ouvia com alguma frequência no interior do navio. Simone era uma das mais ouvidas!
Para todos os que privaram connosco e em particular ao Comandante Soares Lopes um saudoso e apertado abraço.

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