05/05/14

HISTÓRIA À VISTA - 34

          HISTÓRIA À VISTA N.º 34, da autoria do VALM REF Adriano de Carvalho, no formato de Resenha Histórica do seu percurso profissional, publicada no dia em que com os seus restantes camaradas do Curso da Escola Naval "D. João de Castro", comemoram 71 anos de ingresso na Armada!
 
CAPÍTULO N.º I: "Início"
 
          Folheando há dias a minha Nota de Assentamentos, deu-me vontade de registar factos passados na minha vida de Marinha que ainda me restam na memória. Talvez porque os últimos tempos em que servi no activo, fosse em secretárias e não me despertem grande saudade, resolvi (certamente com algumas falhas), restringir-me especialmente aos navios onde embarquei.
          A pergunta que inicialmente faço a mim mesmo é: ”porque vim eu parar à Marinha”? A resposta mais fácil seria por razões de destino. Mas se quiser adiantar alguns motivos teria os seguintes: Porque sou natural de Aveiro e passava as férias na praia da Costa Nova onde aprendi a nadar e a velejar. Porque o meu pai (Of. do Exército com magro vencimento) e tinhas mais 2 filhos para educar e seria egoísmo da minha parte concluir um curso na Universidade do Porto onde fiz os preparatórios.
          De forma que vim para Lisboa concorrer simultaneamente à Academia Militar e à Escola Naval. A favor da primeira estava o facto de ter aprendido a montar, ainda miúdo, no Regimento de Cavalaria n.º 8 de Aveiro, onde o meu Pai prestava serviço. Cheguei mesmo a entrar em concursos hípicos pelo que escolheria a Arma de Cavalaria. O último “empurrão” no entanto foi da minha mãe, ”para a Escola Naval”, talvez por ela ser filha de gente do mar, avô que já tinha morrido quando eu nasci.
          Também pesou a vontade de conhecer o mundo. Por razões que me são alheias, nunca fiz nenhuma comissão no Oriente. O local mais a Leste onde estive foi no Mar Vermelho quando embarquei no “Sam Brás”. Fui sempre para os Açores ou para os EUA.
Em situações em terra, estive também na Guiné e Angola. Foram ao todo cerca de 9 anos fora de Lisboa, excluindo o tempo de pequenas comissões. Mas deixemos estes pormenores e comecemos.
          Terminada que foi a Escola Naval e a viagem de Guarda-Marinha a Angola, no aviso de 2.ª classe “Pedro Nunes”, tivemos mais um ano de estágio em que a rapaziada do meu curso foi distribuída por várias missões. A mim coube-me começar por ser Imediato da lancha de fiscalização “Dourada” que juntamente com a congénere “Corvina” operavam na zona Norte (e que se rendiam quinzenalmente).
          Esta era comandada pelo então 1º Ten. Soares Branco (mais tarde V. Almirante) e o meu Comandante era um 2.º Ten. de nome Gormicho Boavida, (pessoa de poucas simpatias) que depois de me examinar, achou que podia tomar conta dos quartos à ponte em que me cabia o da meia noite até quase a alvorada.
          Desta comissão que durou três meses no Outono de 1946, ocorre-me o seguinte: A determinada altura, tive a triste ideia de sugerir que durante a noite fechássemos as vigias de combate, de forma a não sermos facilmente detectados pelas traineiras espanholas que pescavam nas nossas águas, protegidas pela escuridão. A sugestão foi aceite e resultou em cheio, mas quem se “lixou” fui eu que tive que escrever os autos de transgressão, depois de chegarmos a Leixões com uma dúzia de traineiras espanholas, apresadas perto de Aveiro.
          Tudo isto depois de uma noite de faina sem dormir. Numa outra noite mais calma, e já de madrugada, saboreei a sanduiche mais gostosa da minha vida que me foi oferecida pelo padeiro, com pão acabado de sair do forno e uma sardinha fresquinha assada de conteúdo. Finalmente recordo que noutra noitada de nevoeiro, resolvi ir devagarinho com o navio até às proximidades de Leixões, navegando com o auxílio da sonda e marcações radiogoniométricas da nossa (então) estação de Leça.
          Quando de manhã cedo tive já o porto à vista, chamei o Comandante, muito orgulhoso do que tinha feito. Levei uma grande descompostura, mandou-me regressar ao mar alto e voltou ao camarote para continuar o sono interrompido.
          Calhou-me a seguir mais uma estadia de 3 meses no CT “LIMA” que se encontrava em fabricos no Arsenal do Alfeite e onde a minha vida se resumia a estar de adjunto de Oficial de serviço de 3 em 3 dias. Esta “santa vida” foi bruscamente interrompida para embarcar em diligência no CT “Tejo” que juntamente com o CT ”Vouga” e o “Bartolomeu Dias” (navio-chefe) constituíram uma força-naval para impor a ordem em Tanger (anunciavam-se manifestações), cidade na altura sob a égide da Sociedade das Nações e governada pelo nosso Almirante Magalhães Correia.
          A diligência dos G. Marinhas era destinada a comandar pelotões de desembarque para imporem a ordem caso fosse necessário (não havia Fuzileiros nessa altura) e ainda bem que não se registaram desacatos, pois o nosso treino de Infantaria deixava muito a desejar e, nem sequer houve tempo para treinos.
          Permanecemos em Tanger um fim-de-semana onde nos foi dado passear pela cidade e não gostei dos albornozes. O regresso no entanto, ficou marcado pelo desencadear de uma tempestade de “levante” no estreito de Gibraltar. Assim o Comandante do “Vouga“ pediu avisadamente para largar com antecedência, de manhã cedo de 2.ª Feira e safou-se.
          O “B. Dias” e o “Tejo“ largaram só depois de almoço e apanharam com a violência do mar e vento que felizmente era de popa, mas as vagas não permitiram ao “Tejo” aguentar o rumo. Várias vezes se atravessou e adornou perigosamente pelo que o Comandante pediu ao Chefe para arribar a Gibraltar. Apenas obteve autorização para aumentar a velocidade, mas foi aconselhado pelo Imediato (S. Branco) para não ir nisso e arribar com ou sem autorização.
          Foi o que se fez e foi posteriormente destituído à chegada a Lisboa. (Já não me recordo do nome do Comandante destituído que aliás me pareceu boa pessoa). De qualquer forma foi a primeira vez que fui a Gibraltar, tendo aproveitado para comprar várias quinquilharias, incluído um relógio de Cuco que ainda hoje existe em minha casa. Na terceira parte do estágio, coube-me em Maio ir para Imediato da LF “Bicuda” que felizmente actuava no Algarve, livre das desagradáveis nortadas do Norte.
          O navio estava a acabar reparações no Arsenal do Alfeite o que me permitiu, (com as respectivas autorizações) levar a bordo um snipe do CNOCA, que mais tarde me tornou possível velejar na Ria de Faro durante os tempos de folga. O meu Comandante era na altura o 1.º Ten. Fonseca, bom profissional, exigente mas correcto no trato. Como era algarvio, olhava frequentemente para as nuvens com receio de estar para vir algum levante.
          De resto estávamos já no tempo das praias serem frequentadas, fundeava-mos normalmente para almoço nas proximidades, o que proporcionava algumas visitas a bordo de banhistas femininas. A fiscalização da pesca decorria com normalidade e havia a “tradição” de desculpar, com reprimenda, a entrada ligeira das nossas traineiras nas 6 milhas, o que nos proporcionava agradecimento e a oferta de marisco que se guardava nas frigoríficas, para alturas mais propícias.
          Certa vez quando estávamos de folga, andava eu a velejar no snipe, surgiu à entrada da barra de Faro o iate “N. Sª da Piedade” da família “Sotto Maior” que vinha comandado pelo Com. Matoso, e guarnecido por vários Oficiais, (1.º Ten. Fonseca, o Vitorino do meu curso, o antigo Cabo de manobra do “Patrão Lopes” (guardador do iate), etc.
          Ficaram muito satisfeitos ao avistarem um snipe do CNOCA. Matoso e esposa seguiram para o Hotel e os restantes pediram-me para vir tomar duche na “Bicuda”. Ofereci-lhes então uma mariscada regada por cervejas. À noite fomos até um café de Faro, beber em galhofa mais umas cervejas e como o Café não tinha casa de banho, resolveu-se, por sugestão do Ten. Fonseca, chamar um táxi para nos levar a uma esquina fazer a necessária “mijada”.
          O iate ia posteriormente tomar parte numa regata internacional até Marrocos. Ainda me pediram para reforçar a guarnição, mas o meu Comandante não me autorizou. Voltámos a encontrar-nos mais tarde no cabo de S. Vicente e pediram então reboque até ao Cabo Sardão, mas o Comandante não estava para aí virado, acabando por conceder, caso eu tratasse de tudo.
Assim se fez. O Comandante foi entretanto substituído pelo 2.º Ten. Nascimento que aceitava de bom grado as indicações que lhe dava, provenientes da experiência que tinha adquirido. Demo-nos sempre muito bem e mais tarde quando me encontrava saudava-me sempre com a frase:
- “Olha o meu 1.º Imediato”.
          A esposa era uma Sra. algarvia, muito simpática e que saboreava com prazer os mariscos que lhe oferecia, quando aparecia a bordo no regresso a Faro para a folga. Já me esquecia de dizer que fui encontrar no Algarve uma classe de Marinha que desconhecia e que era constituída por 3 “práticos”. A sua missão era manter actualizada a melhor entrada nas barras arenosas e movediças do Algarve, para servirem de pilotos aos Comandantes.
          Lembro-me que um deles se chamava Cabrita. Terminada que foi a estadia no Algarve, acabou-se o nosso ano de estágio, seguiu-se o habitual exame prático, a bordo do “Bartolomeu Dias” e a nossa seguinte promoção a 2.º Tenentes.
          Coube-me depois o embarque no “S. Brás”, fase de que já tratei em artigo anteriormente publicado. Seguiu-se o curso de especialização em Rádio-Comunicações na antiga Escola de Mecânicos em Vila Franca. Tive como mestres o 1.º Ten. Toscano e o 2.º Ten. Monteiro. O curso era constituído apenas por três 2.º Tenentes (Gil Conde “Av. Naval”, Louçã e eu era o mais “marreta”).
          Terminando este capítulo com humor, lembro-me que o Toscano passava quase metade das aulas a dizer que não tinha tempo para terminar o programa e de facto assim foi… Por outro lado, contava histórias engraçadas das quais me recordo da discrição duma visita dele com um amigo a uma exposição de arte moderna. À saída o amigo exclamou:
- “mas que grande mer….
O expositor ouviu e perguntou-lhe se ele percebia alguma coisa de arte moderna. Resposta:
- ”de arte moderna não percebo nada, mas de mer… percebo".

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