HISTÓRIA À VISTA N.º 35, da autoria do 1.º Comandante do Navio de Apoio “NRP São Miguel” - CMG REF Oliveira e Costa (1985-1988), versando sobre a estadia no Brasil.
MEMÓRIA n.º 14: "Meu Anjo…"
Atracámos ao cais em Fortaleza, no Nordeste Brasileiro! A Banda do NE “Custódio de Melo” retirou depois de o Mestre ter apitado “Volta à Faina”. Colocada a prancha entraram o Adido de Defesa junto da Embaixada de Portugal em Brasília, Coronel do Exército, e o Oficial de Ligação, Tenente de Administração.
Acertaram-se os pormenores do cerimonial dos cumprimentos, retribuições e tomámos conhecimento das actividades previstas durante a permanência do N.R.P. “S. Miguel” naquela Cidade. À noite saímos e jantámos na avenida marginal seguindo depois, para um Hotel próximo, a convite do Adido de Defesa que, juntamente com a mulher, ali nos esperava juntamente com outros casais seus conhecidos e amigos.
O navio ficava relativamente longe do centro da cidade mas a distância percorria-se muito bem a pé. Ao longo do dia havia sempre vento proporcionando uma temperatura muito agradável. Chegados tirámos logo uma fotografia ao Imediato junto duma placa, com o nome da rua, de um tal Meyrelles, um recente e ilustre seu antepassado! Quando já perto do restaurante passaram vários “Buggies” conduzidos e ocupados por jovens graciosas e “modestamente” vestidas com reduzidos “Tops & Shorts” que, abrandando, nos chamavam num alto e claro “Psst! Psst!” inquirindo se queríamos boleia! Passada a surpresa decidimos que íamos jantar!
Depois seguimos para o Hotel onde éramos aguardados pelo Adido que se fazia acompanhar da mulher jovem, simples, extrovertida e extremamente simpática. Na sala grande, tomou-se café e ficámos até tarde a conversar. Curiosamente a mulher do Adido deambulava entre nós e com graça dizia que preferia estar junto de nós mais jovens e bem-dispostos. Foi um convívio muito agradável. Quando a bordo me deitei na minha cama, onde não ia desde a saída de MOTBAY, recordei aquele primeiro dia.
Desde pequeno que acalentava a ideia de ir ao Brasil e a Macau. Ao Brasil já tinha chegado a Fortaleza, a Macau talvez na “próxima vinda”, digo eu hoje! No segundo dia no almoço, a bordo, tínhamos como convidados o Adido de Defesa Português e o Cte. do NE “Custódio de Melo”, um Capitão de Mar e Guerra da Classe de Máquinas. Dei-lhe a presidência da mesa e… fiz mal! Homem grande gostava de exibir-se e fazendo alarde das amizades, que mantinha com oficiais da Marinha de Guerra Portuguesa, levou a maior parte do almoço pretendendo chamar a atenção sobre a sua pessoa e eu sem jeito de o contrariar.
Entretanto, ao longo da sua prosa, deixara entender que em breve seria promovido a Almirante deixando o comando do navio. Perto do fim da refeição quis “discutir” o termo “controlo” que os portugueses incorrectamente diziam “controle”. Queria saber a minha opinião. Estava farto! Na véspera soubera do prazer da maioria dos brasileiros em contar anedotas, com muita graça diga-se, onde a figura do “tanso” era quase sempre desempenhada pelo “português”. Anedotas que cultivavam e estavam sempre disponíveis para contar! Curiosamente no dia anterior ofereceram-me um livro, com mais de cem páginas, só de anedotas do “português”.
Encurralado olhei-o bem na cara e perguntei-lhe com um sorriso “Ó senhor “almirante” por acaso não é nenhuma anedota de portugueses? O almoço continuou de forma mais comedida terminando pouco depois. De tarde fomos recebidos na Capitania dos Portos do Ceará onde nos serviram entre outras bebidas “Água de Coco” muito fresca, com aguardente de cana e sumo de pêra de caju, mistura explosiva naquele tempo morno que nos envolvia completamente. Outra muito apreciada foi a “batidinha de coco”.
Terminado aquele convívio seguimos para uma visita rápida à “Escola de Aprendizes-Marinheiros do Ceará”, uma “Fragata D. Fernando II e Glória” em ponto muito, muito grande, que me seduziu pelo serviço prestado à comunidade e à formação que ali era conseguida. Regressámos a bordo em cima da hora para ir jantar ao NE Custódio de Melo a convite do Comandante. Ainda não “recuperara” do almoço e pedi ao Imediato para me representar. Várias vezes tentou dissuadir-me da decisão mas perante a minha renitência lá foi com a incumbência de apresentar as minhas desculpas justificando, se possível, de que durante a tarde ficara indisposto e recolhera a bordo.
Que eu saiba a minha “não comparência” mereceu uma “elogiosa” carta para os amigos de Lisboa! Nessa tarde soubemos que o pessoal do navio tinha feito uma “conta” no telefone civil, instalado pouco depois de atracarmos, no valor de 80 contos (PTE)! Foi o preço, das saudades de casa, de trinta dias…
Não havendo registos das chamadas efectuadas fez-se a necessária reunião com o pessoal conseguindo-se identificar a quase totalidade das chamadas ultrapassando assim uma situação que poderia ser desagradável. Os dias foram passando sempre com bom tempo e um clima ameno. Na cidade muita gente nas ruas, comércio muito animado e por todo o lado música brasileira. Qualquer loja por mais pequena que fosse tinha música.
Era um granel radiofónico aceite e participado por todos. Já com grande à-vontade e conhecedores das ruas principais da baixa fixávamo-nos, de dia, no Mercado Artesanal, um centro turístico de visita obrigatória, instalado numa antiga Cadeia Pública onde as celas foram aproveitadas dando lugar a pequenas lojas de artesanato e no pátio central uma esplanada onde serviam café, cerveja e gelados. Ali passou a ser o nosso “Meeting Point”! Nas lojas do Mercado, onde julgo todos compraram as tradicionais “Redes”, certamente fruto da canção na altura muito em voga “Bota a rede na varanda…”, e também na esplanada as empregadas jovens, alegres e exuberantes, como a maioria da juventude brasileira, já conheciam os elementos da guarnição do “S. Miguel”!
Para o fim do dia o “programa” era diferente. Ao fim da tarde bebiam-se caipirinhas acompanhadas de patinhas de siri como entrada para o sóbrio jantar seguido de um aprazível passeio na marginal para “desmoer” a picanha e a caipirinha. Recuperados, animados e bem-dispostos seguia-se para o Forró! O Forró é uma festa tipicamente nordestina, onde são incluídos diversos ritmos musicais daquela região, danças praticadas ao jeito europeu mas acrescidas do balançar dos quadris, como o fazem os africanos.
Conhecido e praticado em todo o Brasil, o Forró é especialmente popular no Nordeste brasileiro e em especial na cidade de Fortaleza onde são promovidas grandes festas. Os empreendimentos mais importantes eram “O Pirata”, considerado a Catedral do Forró, curiosamente propriedade de um português, e o “Clube do Vaqueiro”. Foi naquele ano que apareceu a “lambada”, dançada e cantada naqueles dois grandes espaços, mas só dois anos depois surgiu como um sucesso. Estes grandes empreendimentos, democráticos, onde a animação era um “must” numa festa por todos vivida.
Além da música e da dança estes locais boémios da cidade, ofereciam além de outros divertimentos um alargado serviço de restauração, onde imperava o tradicional churrasco. Encerravam para descanso ao domingo mas outro havia, “A Cervejaria”, tão grande quanto os outros, que nesse dia dava Forró! A vida, em Fortaleza, sem Forró não era vida. Nesta “casa” havia uma particularidade, inédita, enquanto o cliente não deitava o copo as empregadas em constante movimento, enchiam-no sempre!
Eram lugares de homenagem à vida. Havia alegria e irreverência, numa explosão de cores e ritmos. Ali, não importava a idade, classe social, etnia, nacionalidade ou religião. Havia espaço e respeito para todos. Apesar de tudo, da excitação, do barulho e da juventude devo realçar que as mulheres, enriqueciam a festa, sempre atarefadas em conseguir par, para a dança, já que o “bicho homem” era escasso.
O Engenheiro cansado do dia-a-dia, a bordo, de volta das avarias, dos fabricos e do calor, esforçava-se por acompanhar os camaradas, quando de licença. Depois do jantar ligeiro, normalmente precedido de umas caipirinhas, rumava-se ao clube. Ali num ambiente barulhento, é certo, mas agradável e acolhedor sentava-se confortavelmente e, com insuspeitada facilidade, fechava os olhos em comatoso descanso!
Sozinho e abandonado à mesa logo surgiam benfazejas criaturas que sacudindo o pobre mortal despertavam-no chamando-o à dança… Pobre Engenheiro! Nesta estadia fomos muito bem recebidos sempre acompanhados, além do Adido e mulher, por dois portugueses ali residentes dos quais um deles, que desempenhava funções na Administração Local do Município, era de Arganil, terra do meu Pai, e talvez por isso surgiu forte empatia acompanhando-me durante toda a nossa permanência, de 29SET a 06OUT, naquela encantadora cidade.
O nosso dia-a-dia era preenchido pelos serviços de bordo e acompanhamento dos fabricos seguido da obrigatória ida ao Mercado de Artesanato e só depois passar ao “Programa” da noite que terminava no Forró ou, “quiçá”, ainda prolongado por eventual acompanhamento psicológico… a alguma alma perdida ou carente! Durante a semana a guarnição visitou, acompanhados do Adido, mulher e do nosso anfitrião de Arganil, um empreendimento nas Praias do Futuro, a convite do gerente, português também de Arganil. Com restaurante, piscina e quartos. Um empreendimento do tipo vertical. Era só chegar e arrumar as bagagens ali tinha tudo!
O pessoal foi todo tomar banho bem como o Adido e mulher, esta era o único elemento feminino presente no evento. De biquíni, cuja parte superior era bem menor que a inferior, despertava olhares cobiçosos, embora respeitadores, de todos os elementos ali presentes, situação, julgo eu, que não desagradava de todo à senhora.
O marido, uma simpatia e amigo sempre presente ao longo da nossa estadia em Fortaleza, ria-se dizendo-lhe carinhosamente: “sua carioca malandra!”. Por sugestão do despenseiro tínhamos levado de Lisboa um carregamento de sardinhas, muito apreciadas no Brasil, para se comerem com a Comunidade Portuguesa residente naquela Cidade do Nordeste. No sábado dia 3OUT, depois de tudo bem combinado, nas instalações da “Sociedade Beneficiente Portuguesa Dois de Fevereiro”, localizada nas Praias do Futuro, iniciou-se um convívio que marcou pela alegria e prazer, a todos sem excepção, onde antes de terminar já deixava saudades!
Estiveram presentes mais de 200 pessoas onde cada família levou a sua contribuição. Nós levámos as sardinhas, grandes e luzidias, dignas de representar Portugal e o “S. Miguel”! Começou-se com Água de Coco, bebida directamente dos cocos, já preparados e guardados em arca frigorífica. Houve quem preferisse cerveja e de prato na mão servíamo-nos duma mesa central onde se colocaram os alimentos que levaram para o convívio.
A parte do “S. Miguel”, exposta junto do grelhador, foi uma das mais aplaudidas. Aquelas sardinhas, para onde convergiam olhares gulosos, eram gordas, grandes, brilhando intensamente sob a forte luz do sol, também faziam parte daquele imaginário que a saudade não deixava apagar e que se encaixavam tão bem naquele encontro! Até eu assei sardinhas! O Eng.º, de forma inesperada, também ajudou no assador, ele que a bordo continuava a não prestar o seu contributo na feitura do jantar das quintas-feiras, quando a navegar, participando somente no repasto, apreciando e criticando, sempre de forma construtiva, na avaliação dos pratos apresentados!
Não há espaço que contenha as descrições que tal encontro proporcionou. O Doutor, outro dos “rendidos” perante tanta beleza e juventude, ficou eterno enamorado daquela terra e das suas gentes filmando metodicamente e com rigor aquele encontro! Curiosamente naquele dia faziam anos dois elementos do “S. Miguel” e dois dos presentes cearenses o que deu azo a que o convívio fosse mais demorado! Talvez por isso, um dos elementos do navio deixou aquele encontro de forma sub-reptícia acompanhado por carinhosa jovem preocupada pelos sinais de impaciência, ansiedade, denunciadora de grave carência afectiva ou por algum incómodo momentâneo, quem sabe provocado por alguma espinha teimosamente atravessada na garganta, ditando o seu preocupado e incondicional apoio a quem viera de tão longe e, também por isso, merecedor de seu afecto, cuidado e doação!
Mais tarde, aparentando total recuperação, voltou para bordo. Outro não menos sacrificado, perante o pessoal feminino, foi os Dr. pois ao saberem do seu ofício, passaram a solicitar, com repetida frequência apoio sanitário, proporcionando-lhe a alegria de se sentir realizado mesmo tão longe da sua terra! Para conhecer Fortaleza não chega fazer prolongadas leituras ou escutar elaboradas descrições, é preciso ir lá, pisar no terreno, pôr o dedo! No dia seguinte, domingo, juntamente com o Imediato e mais dois Oficiais, e pela mão do nosso companheiro de Arganil, participámos na missa de sétimo dia de um português onde apresentámos sentidos pêsames à viúva que agradeceu comovida.
De tarde o navio ficou aberto a visitas. Já se sentia a partida, prevista para terça de manhã, 6OUT, e todos queriam aproveitar o melhor possível o tempo de que ainda dispunham junto dos amigos. O “S. Miguel” estava em “ebulição”. Havia movimento de pessoas por todo o navio. Eram risos, conversas ruidosas, gente percorrendo todo o navio, grupos encostados à borda conversavam ou permaneciam nas câmaras que tinham eleito como um espaço seu!
A meio da tarde estava sozinho na camarinha a escrever quando percebi que alguém parara junto à porta. Olhei e vejo uma rapariga de cabelos soltos, uma cara linda onde sobressaiam, num meigo sorriso, dois grandes olhos, um casaco de peles e dois sapatos de salto alto. Esperou que eu a fixasse bem e então, segura de que tinha toda a minha atenção, mantendo o doce sorriso, segura nas lapelas do casaco que abre lentamente apoiando os braços no quadro da porta mostrando-se toda nua, em pelo, perdão sem pelo, dizendo num tom musical e numa pose estudada:
- “Meu anjo… chêguei…!”, enquanto rolava os olhos pestanudos, sorrindo sempre. Olhei-a de alto a baixo ou de baixo ao alto, para o caso não interessa, e deu para ver que ainda tinha umbigo! Que corpo e em 3D! Parecia que tudo girava à volta dela! Impaciente perante a minha mudez meneou o corpo parecendo irradiar um calor que ocupava por igual toda a camarinha.
Então “corajosamente” disse:
- “Não é aqui, é lá em baixo…”, enquanto apontava com a caneta para o “andar” de baixo.
Reconhecida fez novo sorriso, bamboleou-se “suspensa” nos braços que se mantinham encostados à ombreira da porta, mostrando generosamente tudo o que tinha, respondendo então, na tal voz maviosa:
- “Nos vemos… Tá…”,
enquanto vagarosamente tirava os braços da porta e à vez foi fechando o casaco, talvez de marta, sempre sorrindo e mantendo aquele olhar hipnótico. Limitei-me a dizer um sumido:
- “…Tá”.
Deu a volta e sumiu! Nunca falei a bordo do sucedido e nunca entendi qualquer referencia que me permitisse ligar alguém ao ocorrido, até hoje, não identificando os possíveis “construtores” de tal aparição que, tenho a certeza, fora encomendada! De qualquer modo obrigado pela intenção! Eram tempos conturbados, não haja dúvidas! Em todas as viagens costumava trazer para a minha mulher e para os meus filhos algumas lembranças.
Os miúdos normalmente agradeciam entusiasmados e gratos mas a minha mulher raramente ficava satisfeita não pela qualidade ou quantidade mas pela escolha e tipo de lembrança. Era desencorajador. Apesar das explicações… Com esta ideia a martirizar-me fui ao Mercado do Artesanato mas nunca decidi o que trazer apesar da diversidade de produtos disponíveis.
Em cima da hora só tinha comprado a tradicional “Rede”, hoje ainda guardada na gaveta (!), e não vislumbrava solução. Foi então que me lembrei de pedir aos Oficiais o favor de me comprarem uma lembrança para oferecer à minha mulher dando-lhes a conhecer a razão de tal pedido. Aceite a minha solicitação entreguei dinheiro a cada um deles, alertando-os para a necessária contenção nos gastos e incentivando-os a capricharem na escolha pois desejava “brilhar” quando chegasse a casa.
À noite recebi as encomendas e o troco! Nem as vi. Limitei-me a guardá-las e a ouvir as justificações dos meus “colaboradores”. Chegado a Lisboa fiz a entrega da forma mais informal que consegui. Surpresa total! A minha mulher nem queria acreditar que eu tivera o cuidado de fazer aquelas compras para ela! Lembro-me que havia uma camisa de linho, uma colcha, uma toalha de linho toda trabalhada e mais alguns “artesanatos” que acertaram no “20”!
Ainda hoje quando se fala dessa viagem a minha mulher refere do inesperado das lembranças que lhe trouxe e da alegria que lhe proporcionara. Conta também da insegurança sentida pois interiorizara que afinal não me conhecia tão bem como julgava o que se fora traduzindo, por algum tempo numa situação angustiante. Quando mais tarde e por acaso referi a forma como as “escolhi” respirou de alívio e… “Huf!” com um beijo voltou a agradecer-me as ofertas e agora sim, com o sentimento antigo, de que o “seu” poder, pelo que de mim conhecia, nada fora beliscado ou diminuído…
A todos, que continuam bem presentes no meu coração, e em especial aos meus “colaboradores” um permanente e saudoso abraço.
Leio sempre com muito gosto estas histórias de Marinheiros
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