26/04/12

"HISTÓRIAS À VISTA" - 05

          5.ª “HISTÓRIA À VISTA”, sobre Fuzileiros Navais da CF n.º 8, em Comissão de Serviço em Moçambique entre 1965/1968, da autoria do FZ Carlos Manuel Silva.

A COLUNA, A MINA E MUITA SORTE:

          «Moçambique, distrito do Niassa, primeira metade do ano de 1967. Na «Casa da Marinha», em Vila Cabral, recolhiam-se alguns Fuzileiros que tinham vindo a tratamento ao Hospital ou, como era o meu caso, em trânsito da Beira ou Nampula para a zona de guerra.
          Eu, de meu nome Manuel Silva, mas conhecido entre os Fuzileiros pelo nome de «Carlos», ou pela alcunha de «Tintinaine», tinha passado dois belíssimos meses em Nampula por razões de saúde. Já estava ali há alguns dias esperando lugar no avião que, uma vez por semana, se deslocava a Metangula para fazer o abastecimento.
          Chegou mais uma Quarta-feira, dia do Dakota rumar à improvisada pista que os Fuzileiros tinham construído nas margens do Lago Niassa, e não havia lugar, nem para mim nem para mais ninguém. A carga que ia a bordo do velho avião já era excessiva e o Comandante disse que não podia arriscar nem um quilo a mais.
          O Sargento Marques era quem dava ordens na Casa da Marinha de Vila Cabral e decidiu incorporar-nos, a mim e mais três camaradas da minha Companhia, numa «Coluna de Abastecimento» que sairia para o Lago na manhã seguinte. Recebemos uma G3 cada um e manhã cedo apresentámo-nos no Quartel-General do Exército, onde estava a ser formada a coluna composta por cerca de 70 camiões civis.

          Encarregado da segurança da coluna estava um Alferes, acompanhado por um Pelotão de atiradores que se faziam transportar em duas Berliet Tramagal e dois Unimog. Completava a força de segurança uma Auto-Metralhadora que rompia caminho à frente dos camiões civis. Motores em marcha, pusemo-nos a caminho.
          Uma coluna com 70 camiões bem carregados a rodar por uma estrada de terra batida, em muito mau estado, mexe-se com muita dificuldade e é forçada a parar a cada passo, e nalgumas dessas paragens consumiam-se horas. De Vila Cabral a Metangula são cerca de 130 quilómetros e seria lógico pensar que, mesmo a uma velocidade muito reduzida, no fim do dia lá chegaríamos. Puro engano, anoiteceu e o Comandante da coluna deu ordem para pararmos e montarmos a segurança. Ainda mal tínhamos andado 30 quilómetros.
          Durante a manhã do segundo dia andamos outros 30 quilómetros quase sem parar. Era o mais plano e melhor troço de toda aquela estrada. A meio da tarde rolávamos tranquilamente numa zona baixa, a estrada era rodeada de frondosa vegetação e notavam-se no piso sinais de alguma chuvada recente. Os primeiros camiões foram mastigando o matope e tornando a estrada intransitável. Os condutores desviavam-se, como podiam, das galgueiras abertas pelos pneus do camião precedente, mais pela direita ou mais pela esquerda, de modo a ultrapassar o obstáculo. Como já se temia, a páginas tantas, um dos camiões enterrou-se até ao eixo e ficou atolado no lamaçal.

          Não tenho tempo nem espaço para vos relatar tudo o que aconteceu naquele lugar. Houve camiões enterrados até aos eixos e houve um que se virou de rodas para o ar. Construímos uma nova estrada, paralela à existente, para servir de desvio ao lodaçal, usámos as duas Berliets para rebocar os camiões, usámos os guinchos das Berliets para as arrancar da lama, etc, etc. Trabalhámos como “negros”, civis e militares em conjunto, para fazer todos os camiões e a sua preciosa carga ultrapassar aqueles 50 metros de estrada enlameada onde os pneus resvalavam como se deslizassem sobre manteiga. Três dias e meio foi o tempo que nos levou a consegui-lo. Depois rolamos sem problemas até atingir Maniamba. Sendo uma zona militarizada, ali podíamos andar à vontade e fizemos uma paragem longa e repousante.
          No camião que se virou viajavam à boleia, duas mulheres indígenas e um miúdo, no meio de uma imensidão de barris de vinho. O condutor acreditava que passaria o obstáculo se lançasse o camião a toda a velocidade. Recuou no terreno para aproveitar o máximo de estrada à sua frente, acelerou a fundo e lançou-se em direcção ao atoleiro. Poucos metros andados o camião afocinhou no lodo, capotou e ficou virado de rodas para o ar. Viram-se barris a voar por cima da cabine e no meio deles os três infelizes indígenas que não ganharam para o susto. Felizmente nenhum de aleijou.

          Durante uma das noites que ali passamos desatou todo o mundo aos tiros, sem mais nem menos. Alguém disparou um tiro e todos começaram a dar ao gatilho ao mesmo tempo. Aquilo funcionava como um escape para a tensão acumulada durante tantas horas de vigília. Passados uns minutos andava o Alferes a gritar:
- "Alto fogo, alto fogo".
          E quando se quis saber quem tinha sido o primeiro a abrir fogo, todos respondiam:
- "Eu cá não fui!".
          No dia seguinte reiniciamos a viagem, enfrentando os últimos 30 quilómetros do percurso. Os últimos e os mais difíceis, pois foi decidido que seguiríamos pela Estrada do Caracol, a mais directa para o Lago. Nesse percurso havia 7 pequenas pontes de madeira, sobre pequenos rios de montanha, que representavam um perigo enorme para aqueles camiões tão carregados. Fomos progredindo devagar e com o máximo cuidado até que recebemos ordem para parar:
- "Vamos montar acampamento aqui, preparem a segurança como é habitual, a próxima ponte está cortada e teremos que reconstruí-la se quisermos passar para o outro lado", dissera o Comandante da força de segurança.
          Mas isso era mais fácil de dizer do que fazer. Sem as necessárias ferramentas nunca o conseguiríamos fazer. Optou-se por criar uma passagem por dentro de água, num sítio em que as margens do ribeiro o permitiam. Arrumamos as pedras maiores do caminho e o Unimog passou para o outro lado sem qualquer dificuldade. Depois avançou a primeira Berliet. Usaram-se as calhas metálicas (que elas levavam penduradas nos taipais) para meter debaixo das rodas, mas uma delas cedeu e o pneu enterrou-se no leito do rio. Foi um bico d'obra para a arrancar do atoleiro e fazê-la regressar ao ponto de partida.
          Vendo a difícil situação em que nos encontrávamos o Comandante deu ordens para suspender as operações e, como se aproximava a noite, o melhor seria tomar a última refeição do dia e, depois de uma noite de descanso, talvez as coisas se apresentassem de forma menos negra.
          Perto do lugar onde nos encontrávamos estava aquartelada uma Companhia de Engenharia do Exército. O Alferes que nos comandava começou a tentar contactá-los pela rádio. Ao fim de algumas tentativas alguém lhe respondeu. Era uma patrulha dessa Companhia que andava nas proximidades. Tomaram nota da nossa situação e prometeram estar ali logo que o Sol nascesse para nos dar uma ajuda. Podíamos descansar finalmente.

          Antes que a luz do dia nos abandonasse preparámo-nos para liquidar os restos da ração de combate daquele dia. Como tínhamos os cantis vazios era preciso arranjar água, pois sem ela aqueles duros biscoitos não escorregariam facilmente goela abaixo. Por baixo da ponte destruída corria um riacho de águas límpidas que nos podia fornecer aquilo que procurávamos. Dois rapazes do Exército, um Grumete da minha Companhia e eu próprio, dirigimo-nos para lá de cantil na mão. O lugar mais apropriado para descer até à água ficava do outro lado da ponte. Atravessámo-la sem problemas, equilibrando-nos sobre o tronco de um dos lados da ponte que se mantinha ainda intacto, no seu lugar.
          O talude em que a ponte se apoiava, de ambos os lados, era formado por grandes blocos de pedra. Andamos uns metros para lá da ponte e descobrimos que havia já um pequeno carreiro que levava até à borda de água. Para aceder a esse carreiro só era preciso vencer um desnível de cerca de um metro de altura, saltando do talude para baixo. Alguém costumava usar aquele sítio para se abastecer regularmente de água, pois o carreiro estava limpo de ervas e capim. Para além do mais, alguém tinha encostado ao talude uma pedra de tamanho considerável para servir de degrau e ajudar a subir e descer, no caminho para a água.
          Não havia que hesitar, era aquele o nosso caminho para a água. À frente de todos ia um dos rapazes do Exército seguido pelo meu camarada. Ligeiramente atrás dele ia eu e, em último lugar, o quarto elemento do grupo. Logo que o primeiro da fila saltou para cima da pedra que servia de degrau, esta desfez-se em estilhas, levantando uma enorme nuvem de poeira, ouvindo-se em simultâneo o característico "BUUUUMMM" da explosão de uma mina.
          Fomos todos atirados pelo ar como bonecos desarticulados. Eu aterrei no meio do capim e demorei uns segundos a perceber o que tinha acontecido. Os ouvidos zumbiam como se lá tivesse entrado um enxame de abelhas. Quando tomei consciência do que tinha acontecido, apalpei braços e pernas à procura de qualquer ferimento, pois não sentia nada além do zumbido nos ouvidos. À primeira vista estava incólume. Notei apenas uma gotícula de sangue, na mão esquerda, entre o polegar e o indicador. Qualquer coisa tinha atravessado ali de um lado para o outro, talvez um grão de areia ou um minúsculo estilhaço da mina. Nas duas Comissões que fiz foi o meu único ferimento de guerra! Falando apenas no físico, está claro.

          Tinham passado não mais de dez ou quinze segundos. De repente começou a ouvir-se gemer alguém, entre o capim, a alguns metros de distância do lugar em que me encontrava. Com cuidado levantei a cabeça, receando que pudéssemos, de um momento para o outro, ficar debaixo de fogo. Mas nada aconteceu, estava tudo silencioso como num cemitério. Aproximei-me do camarada do Exército que gemia. À primeira olhadela não se notava nada. Tinha as botas calçadas e as calças, embora muito esfarrapadas, mantinham-se no seu lugar encobrindo os ferimentos. Na verdade tinha as duas pernas transformadas numa pasta de carne, ossos e sangue que só os restos das calças seguravam no lugar.
          Demoramos alguns minutos a reagir, pois todos temiam que aquilo fosse uma emboscada. Mas lentamente os camaradas foram-se aproximando e verificando o estado em que, nós os quatro envolvidos na explosão, nos encontrávamos. O meu camarada mostrava um pequeno ferimento num tornozelo que não parecia grave. O outro camarada do Exército não tinha sofrido nada. A nossa preocupação virava-se para aquele que tinha as pernas desfeitas. Era preciso retirá-lo dali antes que se esvaísse em sangue.
          O Comandante da coluna contactou com o seu Quartel-General e pediu-lhes que enviassem um helicóptero para evacuar o ferido. Em poucos minutos ficou a saber que a Força Aérea não se arriscaria a deixar sair um Helicóptero da Base a poucos minutos do pôr-do-sol. A operação demoraria uma meia hora e seria então noite escura. Nem pensar!

          Sem saber muito bem o que fazer pusemo-nos a dar voltas à imaginação tentando descobrir uma solução para sair daquele aperto. Tínhamos garroteado as pernas do ferido no ponto mais alto das coxas, mesmo por cima dos restos das calças. Ele cada vez gritava mais alto. As dores deviam ser infernais. Do lado do Alferes não saía ordem nenhuma. Às tantas virei-me para ele e propus-lhe que puséssemos o ferido em cima do Unimog e partíssemos em direcção a Metangula, com um pequeno grupo de protecção. Ele olhou para mim incrédulo e disse:
- "Isso é uma loucura. Se vos apanham aí na picada matam-vos a todos!".
- "Mas se ficarmos aqui até de manhã o seu subordinado morre pela certa!".
- "Mas podem morrer todos para salvar um".
- "É o risco que temos que correr".
- "E quem é que vai?".
- "Vou eu e o meu camarada Fuzileiro, o condutor do Unimog e o seu ajudante. Basta arranjar mais dois voluntários que nos queiram acompanhar".
- "Ok, acho que tens razão. Eu vou contactar o pessoal de Nova Coimbra, para ver se podem ir ao vosso encontro".
          Passamos o Unimog para o outro lado do riacho. Deitamos o ferido em cima de um colchão de borracha insuflável que surgiu não se sabe de onde e preparámo-nos para partir. Aquele soldado que estivera envolvido na explosão e um amigo dele, foram os dois escolhidos para completar o grupo.
          Todas as outras pontes que passamos estavam intactas e rodávamos a toda a velocidade que a viatura e a estrada nos permitiam. A meio do caminho encontramos a patrulha de Nova Coimbra que vinha ao nosso encontro. Fizemo-los dar meia volta e aceleramos montanha abaixo. Meia hora depois estávamos na nossa base e o ferido na Enfermaria com toda a equipa médica à volta dele.
          Na manhã seguinte, ainda o sol mal iluminava a península de Metangula, chegou o Helicóptero para efectuar a evacuação. O Soldado, de quem nunca soube o nome, e o nosso camarada com o tornozelo perfurado por um estilhaço, foram levados para o Hospital de Vila Cabral. Dali seguiram para Lourenço Marques e mais tarde para Lisboa. Foram tratados nos Hospitais militares do ramo das FA’s a que cada um pertencia. A Metangula chegaram notícias de que tudo tinha corrido bem e a vida deles não corria qualquer risco.

          Passaram-se mais uns meses e a minha Companhia foi rendida no Niassa, regressando à capital da Província. Era tempo de preparar as coisas para a nossa partida para a Metrópole. Já de regresso à Escola de Fuzileiros procurei informar-me do destino que levaram os dois feridos no rebentamento daquela mina.
          O Fuzileiro usou e abusou da baixa médica e meteu-se em encrencas em Lisboa, durante esse período. Como castigo foi enviado para a Guiné e incorporado numa companhia que lá prestava serviço.
          O Soldado, com as duas pernas amputadas, fez um longo período de recuperação e foi depois enviado para a Alemanha. Foi entregue aos cuidados de uma clínica especializada em próteses que lhe dispensou um tratamento cinco estrelas. Quando regressou a Portugal, muitos meses depois de eu ter abandonado a Briosa, mexia-se com tanto à-vontade, em cima das pernas artificiais, como se já usasse aquilo há anos. Isto vim eu a saber por intermédio de alguns conterrâneos que continuaram na Escola de Fuzileiros por mais algum tempo.
          Naquele dia, na estrada do Caracol, de Maniamba para Metangula, com um pouco mais de azar podíamos ter morrido os quatro. Mas como viram, com um pouco de sorte e algum arrojo, não morreu nenhum.»

13/04/12

"HISTÓRIAS À VISTA" - 04

          4.ª “HISTÓRIA À VISTA”, sobre Fuzileiros Especiais do DFE nº 2, em Comissão de Serviço em Angola entre 1965/1967, da autoria do Marinheiro FZE José Rebelo e SAJ REF Afonso Brandão, este último além de ser especializado nas armas de FZE e Mergulhador-Sapador (Comissão de Serviço na Guiné-Bissau na Secção n.º1 de Mergulhadores-Sapadores entre 1970/1972), é o administrador e seu grande dinamizador dos seguintes blogues:
- http://angola-dfe2-1965a1967.blogspot.com/
- http://fuzileiromergulhador.blogspot.com/
- http://fuzileiromergulhador.no.comunidades.net/
- http://cadetesdomar.no.comunidades.net/index.php

DE CABINDA À ZAMBIA:

          «Dezembro de 1966, a UNITA ataca violentamente Vila Teixeira de Sousa, a região do Cazombo a Leste de Angola, com a vizinha Zâmbia ao lado.
          Fiz parte de um grupo de combate de cerca de 40 Fuzileiros que um dia lhes nasceu o sol a 2000 e tal quilómetros da capital Luanda. Desta vez nas margens direita do Rio Zambeze mesmo ali às portas da Zâmbia (Lumbala Velha).
          Mochila no chão, G3 encostada à perna direita, fumava um cigarro e observava toda a área que me confinava um rio bastante largo com um caudal pouco navegável naquela época do ano e uma mata dispersa longitudinal às margens com clareiras aqui e ali, após esta minha breve observação falava eu para os meus botões:
- "Hum, isto aqui vai cantar mais fino, 40 Fuzileiros vazados de fome, com meia dúzia de botes remendados, isto vai ser um festival".

          No dia seguinte logo ao amanhecer, botes na água e lá vamos nós rio abaixo com o máximo silêncio, encostados a uma das margens que nos oferecia melhor navegabilidade em caso de ser necessário utilizar a velocidade, quando o sol raiou então constatamos que o rio era muito mais perigoso que o julgávamos ser, estava infestado de corpulentos jacarés que embora nós treinados a saltar por cima destes obstáculos, não deixava de ser sempre um risco quando não se fosse mais rápido que a acção do próprio, continuamos a descer o rio e não se deslumbrava sinais de cubatas ou palhotas nas margens.
          A determinado ponto invertemos o sentido e subimos o rio antes que se fizesse noite, regressa-mos ao ponto de partida sem confrontos, mas com plena certeza de terem sido de perto observados os nossos movimentos, não tardariam a testar as nossas capacidades de acção.
          Dois dias depois, 25 Fuzileiros do grupo partiram da Lumbala para o Cazombo, afim de escoltar uma Lancha por terra com destino a Lumbala, 30 minutos após a nossa partida de Lumbala, fomos terrivelmente emboscados na picada, com uma barragem de fogo de armas automáticas à distancia de pouco mais de 10 metros que nos fez rastejar em sua direcção, mas impedidos pelo rebentamento de várias granadas, mantivemos por alguns minutos um forte duelo de fogo, ouvimos gritos como dizendo:
- "Angola é nossa"
          O fogo diminuiu após o disparo certeiro do nosso Lança-Granadas-Foguete, permitindo-nos um avanço de poucas dezenas de metros que culminou na fuga rápida do inimigo, deixando no terreno 2 mortos e nós com um saldo de 12 feridos.

          Os poucos Fuzileiros que ficaram no acampamento comandados por um Sargento, ao ouvirem os rebentamentos das granadas e o matraquear das armas automáticas, imediatamente largaram em botes rio acima navegando em velocidade pelo leito do rio, com o objectivo de fazerem o envolvimento ao inimigo ou os surpreender na travessia do rio para a margem oposta.
          Percorridas cerca de duas milhas avistaram umas canoas que apressadamente rumavam para a margem infiltrando-se na orla da densa mata abrindo rajadas de fogo contínuo para os botes, estes debaixo de fogo intenso largam da zona da morte e embicam à margem esquerda abrindo fogo de Bazuca e calaram o inimigo.
          Fizeram uma batida na zona da margem esquerda encontrando mortos e alguns feridos, assim terminou o dia 28 de Dezembro de 1966, vivido na minha pessoa como interveniente na acção.»

03/04/12

"HISTÓRIAS À VISTA" - 03

          3.ª “HISTÓRIA À VISTA”, da autoria do FZE Mário Manso, personalidade carismática da Associação de Fuzileiros, versando sobre ocorrências nas suas duas Comissões de serviço em Angola, pautadas por valores como a Camaradagem, Espírito de Corpo e Sentido do Dever (cívico e militar).

COINCIDÊNCIAS DA GUERRA:

          «Há coisas que presenciámos, que nos marcam de forma muito intensa e para toda a vida. Um dia decorria o ano de 1962, depois de mais uns jogos de matraquilhos no Bairro Alto, onde uns quantos chulecos, que por ali sobreviviam usando os seus expedientes, me resgatavam para com eles jogar, confrontando o seu dinheiro em apostas por cada jogo, com outros habituais adversários.
          Certo dia, de um momento para o outro, arma-se um arraial de pancada, onde estavam envolvidos mais de meia dúzia de combatentes, sendo três deles marujos de cordão vermelho no braço esquerdo. Eram umas máquinas na arte de bem bater de tal forma, que me levou mais tarde a ir prá Marinha e para os seus Fuzileiros, a esses Camaradas devo em certa medida a minha decisão afectuosa. Aconteceu em conversas à posterior, já na Escola de Fuzileiros vir a falar dessas cenas, com dois desses três intervenientes.
          Este foi o princípio de uma longa caminhada que, a dias de fazer 50 anos de ter entrado na Escola de Vale de Zebro, eu sinta que valeu a pena ter feito tal opção.

          Depois de cumpridos todos os testes da escolaridade necessária para obter o direito à Boina, sou de seguida integrado num Destacamento de Fuzileiros Especiais que cumpriu uma Comissão de quase 26 meses em Angola. É desta unidade que foram premiados os primeiros feridos e morto, em combate nesta província ultramarina.
          A mim calhou-me, a primeira bala a marcar um Fuzileiro neste território. Também na mesma operação, mais dois Camaradas foram feridos, tendo um falecido e o outro ficado deficiente. Passados alguns dias, sou chamado ao Comando Naval de Angola à presença do Sr. Almirante, se bem me lembro de nome Laurindo dos Santos.
          Tentou convencer-me a vir de avião para Lisboa para recuperação. Disse-lhe que gostaria mais de ir com os meus Camaradas para o Zaire! Ele voltou de novo a insistir para que aproveitasse. E foi com alguns argumentos, que hoje reconheço um pouco imbecis, porque reflectiram alguma ignorância, que lhe voltei a manifestar o meu desejo de ir com o Destacamento. Pois que mesmo limitado podia contar com todos eles. Pois ali estavam os Camaradas, que disseram ao Telegrafista, que avisasse o Piloto, que ou pousava, ou levaria uma rajada, porque mostrava estar amedrontado e com receio de me ir recolher.
          E foi com estes pressupostos que consegui demover o Sr. Almirante, a deixar-me seguir com a minha unidade de combate. Fui parar ao posto do Tridente, o mais a montante do Rio Zaire, antes de Nóqui onde havia um Quartel do Exército e o rio deixava de ter a sua margem esquerda a banhar onterritório de Angola.
          E foi deste local onde alguns dias depois de ali termos chegado, que também andei, mesmo limitado, a levar de bote Soldados da margem Angolana, onde tinham caído numas armadilhas por eles mesmo colocadas, tendo nessa noite, feito algumas viagens transportando-os até Noqui.
          Só mais tarde apercebi-me que a intenção do Sr. Almirante era atribuir-me o prémio Governador-geral de Angola. Nem tudo foi perdido porque um louvor, deu-me a hipótese de não pagar as propinas da minha Filha quando frequentou a Universidade, o que não foi mau.

          Volto de novo a uma 2.ª Comissão, passados cinco meses de ter regressado da anterior. Uma curiosidade, é que o Cte. era o mesmo e nesta unidade mais de 30 elementos farão também da sua segunda Comissão.
          Quando de novo em Cabinda na Lagoa do Massabi, tive a incumbência de matar a malvada ao pessoal, como Cabo de rancho. Este cargo dava-me uma certa liberdade, pelo que levou-me a ocupar parte de algumas noites a fazer “psicó”, num povo que se situava a mais ou menos 30 minutos de bote do nosso posto. Ai ficava enquanto a patrulha cumpria a sua missão na lagoa, fazendo companhia a uma Maria que já antes na 1.ª Comissão tinha-me desafiado.
          Ao falar nisto hoje, arrepio-me do perigo que se é capaz de correr, por aquela coisa! É também na permanência naquele posto que certo dia com um outro Camarada, resgatámos 03 homens do Exército nas margens da lagoa, que se haviam perdido quando na manhã do dia anterior, tentaram nas imediações do seu Quartel ido fazer uma caçada, mas por se terem desorientado ali vieram ter.
          Quando experimentávamos a operacionalidade de um motor, com registo de avaria da última patrulha, e relativamente distante do nosso posto, ouvimos tiros! Pela experiência, logo apercebi-me de que eram tiros a denunciar a presença, pelo que, avançamos até à margem e os recuperamos. Caso passasse a patrulha na altura, teria sido mais complicado, por alguma manifesta menos experiência e poderiam abrir fogo, sentindo-se emboscados.
          Levados para o posto, com eles não estive mais de uma hora, tempo que mediou o dar-lhes de comer e beber, e a chegada dos carros para os levar para o seu Quartel, que entretanto tinha sido informado, este que ficava ainda a um razoável distância, homens que nunca mais vi, mas mesmo assim, anos mais tarde venho a encontrar-me com um desses elementos, na altura namorado de uma amiga da minha hoje Mulher. Uma pura mas grande coincidência!
          Depois das apresentações feitas pela minha namorada, logo lhe disse que o conhecia de qualquer lado! Depois de exploradas várias hipóteses, disse-me que tinha estado em Cabinda, de imediato perguntei-lhe se não era o camarada caçador do Exército que se tinha perdido e um dia foi recuperado pelos Fuzos nas margens da lagoa do Massabi? É claro que foi um momento de alguma emoção, porque tantas vezes já tinha falado no caso, e sempre dizia que muito gostaria de nos encontrar! Hoje o Mário Manso e o Mário de Sousa são dois grandes Amigos - mesmo dois irmãos.

          Alguns dias depois, aconteceu um jogo de futebol com um grupo dos chamados “T’ÉS grupos de guerrilheiros” que se tinham entregado. Como Cabo de rancho coube-me, fazer as honras da casa ao Sargento que com os outros elementos almoçaram connosco. Logo tomei a iniciativa da conversa, começando por a orientar no sentido de saber coisas da guerrilha.
          Depois de debitar-me locais de treino, forma como entravam depois no território Angolano e a sua deslocação até aos pontos destinados a cada grupo, foi um desenrolar constante de acontecimentos emoldurantes, alguns deles por mim já vividos entre 63/65, com algumas peripécias deveras interessantes.
          A certa altura do meu questionário, ele diz-me que em fins de Março 1964 um grupo muito complicado lhes tinham queimado os acampamentos e destruídos os seus mantimentos, etc, etc. A certa altura da conversa, logo que me falou na casa de zinco e mata vinte e oito de Maio, eu já com os pêlos em pé!
Pergunto-lhe:
- "Então e não deram tiros no pessoal?".
- "Sim logo à entrada da mata fizemos emboscada e matámos!".
- "Então, como é que sabe?" Questionei.
- "O heli foi buscar morto.".
          Como estava de calções, levantei-me e disse-lhe que esse morto era eu. Ao mesmo tempo que lhe mostrava o local onde tinha levado o tiro, retribui-me de imediato de forma angustiante, levantando a camisa para amostragem das suas cicatrizes daquela “nossa” guerra.
          O desespero estava bem patenteado no rosto daquele ex-guerrilheiro, mas que eu logo acalmei com um abraço, deixando-o assim mais calmo. Foi um momento também, muito especial da minha vida esta coincidência, em que dois ex-inimigos, que antes se confrontaram estavam agora ali frente a frente, desta vez do mesmo lado da barricada.

          Quando estive no Hospital Militar, um Médico de Marinha que lá tinha-me assistido, tinha prometido um almoço aos seus colegas, quando lá aparecesse um Fuzo ferido. Certo dia, uns anos mais tarde estando o meu Pai doente, o Médico da Caixa de Previdência é chamado, e logo que entrou disse para comigo:
- "Conheço esta cara!".
          Quando no final da consulta perguntei-lhe se não tinha estado no Hospital em Luanda e disse-me que sim, interroguei-o se não se lembra de mim? Respondeu-me perguntando-me: se eu não era aquele primeiro Fuzileiro ferido em Angola, na operação onde houve mais dois baleados tendo um morrido, e que lhe tinha feito perder um almoço? Os dois tínhamos acertado nos palpites.
          Estas quatro coincidências marcaram-me para todo o sempre! Como é que isto pode acontecer!? Isso deve-se provavelmente a uma outra guerra; mas sem armas».

Fuzileiro uma vez, Fuzileiro para sempre!...