26/04/12

"HISTÓRIAS À VISTA" - 05

          5.ª “HISTÓRIA À VISTA”, sobre Fuzileiros Navais da CF n.º 8, em Comissão de Serviço em Moçambique entre 1965/1968, da autoria do FZ Carlos Manuel Silva.

A COLUNA, A MINA E MUITA SORTE:

          «Moçambique, distrito do Niassa, primeira metade do ano de 1967. Na «Casa da Marinha», em Vila Cabral, recolhiam-se alguns Fuzileiros que tinham vindo a tratamento ao Hospital ou, como era o meu caso, em trânsito da Beira ou Nampula para a zona de guerra.
          Eu, de meu nome Manuel Silva, mas conhecido entre os Fuzileiros pelo nome de «Carlos», ou pela alcunha de «Tintinaine», tinha passado dois belíssimos meses em Nampula por razões de saúde. Já estava ali há alguns dias esperando lugar no avião que, uma vez por semana, se deslocava a Metangula para fazer o abastecimento.
          Chegou mais uma Quarta-feira, dia do Dakota rumar à improvisada pista que os Fuzileiros tinham construído nas margens do Lago Niassa, e não havia lugar, nem para mim nem para mais ninguém. A carga que ia a bordo do velho avião já era excessiva e o Comandante disse que não podia arriscar nem um quilo a mais.
          O Sargento Marques era quem dava ordens na Casa da Marinha de Vila Cabral e decidiu incorporar-nos, a mim e mais três camaradas da minha Companhia, numa «Coluna de Abastecimento» que sairia para o Lago na manhã seguinte. Recebemos uma G3 cada um e manhã cedo apresentámo-nos no Quartel-General do Exército, onde estava a ser formada a coluna composta por cerca de 70 camiões civis.

          Encarregado da segurança da coluna estava um Alferes, acompanhado por um Pelotão de atiradores que se faziam transportar em duas Berliet Tramagal e dois Unimog. Completava a força de segurança uma Auto-Metralhadora que rompia caminho à frente dos camiões civis. Motores em marcha, pusemo-nos a caminho.
          Uma coluna com 70 camiões bem carregados a rodar por uma estrada de terra batida, em muito mau estado, mexe-se com muita dificuldade e é forçada a parar a cada passo, e nalgumas dessas paragens consumiam-se horas. De Vila Cabral a Metangula são cerca de 130 quilómetros e seria lógico pensar que, mesmo a uma velocidade muito reduzida, no fim do dia lá chegaríamos. Puro engano, anoiteceu e o Comandante da coluna deu ordem para pararmos e montarmos a segurança. Ainda mal tínhamos andado 30 quilómetros.
          Durante a manhã do segundo dia andamos outros 30 quilómetros quase sem parar. Era o mais plano e melhor troço de toda aquela estrada. A meio da tarde rolávamos tranquilamente numa zona baixa, a estrada era rodeada de frondosa vegetação e notavam-se no piso sinais de alguma chuvada recente. Os primeiros camiões foram mastigando o matope e tornando a estrada intransitável. Os condutores desviavam-se, como podiam, das galgueiras abertas pelos pneus do camião precedente, mais pela direita ou mais pela esquerda, de modo a ultrapassar o obstáculo. Como já se temia, a páginas tantas, um dos camiões enterrou-se até ao eixo e ficou atolado no lamaçal.

          Não tenho tempo nem espaço para vos relatar tudo o que aconteceu naquele lugar. Houve camiões enterrados até aos eixos e houve um que se virou de rodas para o ar. Construímos uma nova estrada, paralela à existente, para servir de desvio ao lodaçal, usámos as duas Berliets para rebocar os camiões, usámos os guinchos das Berliets para as arrancar da lama, etc, etc. Trabalhámos como “negros”, civis e militares em conjunto, para fazer todos os camiões e a sua preciosa carga ultrapassar aqueles 50 metros de estrada enlameada onde os pneus resvalavam como se deslizassem sobre manteiga. Três dias e meio foi o tempo que nos levou a consegui-lo. Depois rolamos sem problemas até atingir Maniamba. Sendo uma zona militarizada, ali podíamos andar à vontade e fizemos uma paragem longa e repousante.
          No camião que se virou viajavam à boleia, duas mulheres indígenas e um miúdo, no meio de uma imensidão de barris de vinho. O condutor acreditava que passaria o obstáculo se lançasse o camião a toda a velocidade. Recuou no terreno para aproveitar o máximo de estrada à sua frente, acelerou a fundo e lançou-se em direcção ao atoleiro. Poucos metros andados o camião afocinhou no lodo, capotou e ficou virado de rodas para o ar. Viram-se barris a voar por cima da cabine e no meio deles os três infelizes indígenas que não ganharam para o susto. Felizmente nenhum de aleijou.

          Durante uma das noites que ali passamos desatou todo o mundo aos tiros, sem mais nem menos. Alguém disparou um tiro e todos começaram a dar ao gatilho ao mesmo tempo. Aquilo funcionava como um escape para a tensão acumulada durante tantas horas de vigília. Passados uns minutos andava o Alferes a gritar:
- "Alto fogo, alto fogo".
          E quando se quis saber quem tinha sido o primeiro a abrir fogo, todos respondiam:
- "Eu cá não fui!".
          No dia seguinte reiniciamos a viagem, enfrentando os últimos 30 quilómetros do percurso. Os últimos e os mais difíceis, pois foi decidido que seguiríamos pela Estrada do Caracol, a mais directa para o Lago. Nesse percurso havia 7 pequenas pontes de madeira, sobre pequenos rios de montanha, que representavam um perigo enorme para aqueles camiões tão carregados. Fomos progredindo devagar e com o máximo cuidado até que recebemos ordem para parar:
- "Vamos montar acampamento aqui, preparem a segurança como é habitual, a próxima ponte está cortada e teremos que reconstruí-la se quisermos passar para o outro lado", dissera o Comandante da força de segurança.
          Mas isso era mais fácil de dizer do que fazer. Sem as necessárias ferramentas nunca o conseguiríamos fazer. Optou-se por criar uma passagem por dentro de água, num sítio em que as margens do ribeiro o permitiam. Arrumamos as pedras maiores do caminho e o Unimog passou para o outro lado sem qualquer dificuldade. Depois avançou a primeira Berliet. Usaram-se as calhas metálicas (que elas levavam penduradas nos taipais) para meter debaixo das rodas, mas uma delas cedeu e o pneu enterrou-se no leito do rio. Foi um bico d'obra para a arrancar do atoleiro e fazê-la regressar ao ponto de partida.
          Vendo a difícil situação em que nos encontrávamos o Comandante deu ordens para suspender as operações e, como se aproximava a noite, o melhor seria tomar a última refeição do dia e, depois de uma noite de descanso, talvez as coisas se apresentassem de forma menos negra.
          Perto do lugar onde nos encontrávamos estava aquartelada uma Companhia de Engenharia do Exército. O Alferes que nos comandava começou a tentar contactá-los pela rádio. Ao fim de algumas tentativas alguém lhe respondeu. Era uma patrulha dessa Companhia que andava nas proximidades. Tomaram nota da nossa situação e prometeram estar ali logo que o Sol nascesse para nos dar uma ajuda. Podíamos descansar finalmente.

          Antes que a luz do dia nos abandonasse preparámo-nos para liquidar os restos da ração de combate daquele dia. Como tínhamos os cantis vazios era preciso arranjar água, pois sem ela aqueles duros biscoitos não escorregariam facilmente goela abaixo. Por baixo da ponte destruída corria um riacho de águas límpidas que nos podia fornecer aquilo que procurávamos. Dois rapazes do Exército, um Grumete da minha Companhia e eu próprio, dirigimo-nos para lá de cantil na mão. O lugar mais apropriado para descer até à água ficava do outro lado da ponte. Atravessámo-la sem problemas, equilibrando-nos sobre o tronco de um dos lados da ponte que se mantinha ainda intacto, no seu lugar.
          O talude em que a ponte se apoiava, de ambos os lados, era formado por grandes blocos de pedra. Andamos uns metros para lá da ponte e descobrimos que havia já um pequeno carreiro que levava até à borda de água. Para aceder a esse carreiro só era preciso vencer um desnível de cerca de um metro de altura, saltando do talude para baixo. Alguém costumava usar aquele sítio para se abastecer regularmente de água, pois o carreiro estava limpo de ervas e capim. Para além do mais, alguém tinha encostado ao talude uma pedra de tamanho considerável para servir de degrau e ajudar a subir e descer, no caminho para a água.
          Não havia que hesitar, era aquele o nosso caminho para a água. À frente de todos ia um dos rapazes do Exército seguido pelo meu camarada. Ligeiramente atrás dele ia eu e, em último lugar, o quarto elemento do grupo. Logo que o primeiro da fila saltou para cima da pedra que servia de degrau, esta desfez-se em estilhas, levantando uma enorme nuvem de poeira, ouvindo-se em simultâneo o característico "BUUUUMMM" da explosão de uma mina.
          Fomos todos atirados pelo ar como bonecos desarticulados. Eu aterrei no meio do capim e demorei uns segundos a perceber o que tinha acontecido. Os ouvidos zumbiam como se lá tivesse entrado um enxame de abelhas. Quando tomei consciência do que tinha acontecido, apalpei braços e pernas à procura de qualquer ferimento, pois não sentia nada além do zumbido nos ouvidos. À primeira vista estava incólume. Notei apenas uma gotícula de sangue, na mão esquerda, entre o polegar e o indicador. Qualquer coisa tinha atravessado ali de um lado para o outro, talvez um grão de areia ou um minúsculo estilhaço da mina. Nas duas Comissões que fiz foi o meu único ferimento de guerra! Falando apenas no físico, está claro.

          Tinham passado não mais de dez ou quinze segundos. De repente começou a ouvir-se gemer alguém, entre o capim, a alguns metros de distância do lugar em que me encontrava. Com cuidado levantei a cabeça, receando que pudéssemos, de um momento para o outro, ficar debaixo de fogo. Mas nada aconteceu, estava tudo silencioso como num cemitério. Aproximei-me do camarada do Exército que gemia. À primeira olhadela não se notava nada. Tinha as botas calçadas e as calças, embora muito esfarrapadas, mantinham-se no seu lugar encobrindo os ferimentos. Na verdade tinha as duas pernas transformadas numa pasta de carne, ossos e sangue que só os restos das calças seguravam no lugar.
          Demoramos alguns minutos a reagir, pois todos temiam que aquilo fosse uma emboscada. Mas lentamente os camaradas foram-se aproximando e verificando o estado em que, nós os quatro envolvidos na explosão, nos encontrávamos. O meu camarada mostrava um pequeno ferimento num tornozelo que não parecia grave. O outro camarada do Exército não tinha sofrido nada. A nossa preocupação virava-se para aquele que tinha as pernas desfeitas. Era preciso retirá-lo dali antes que se esvaísse em sangue.
          O Comandante da coluna contactou com o seu Quartel-General e pediu-lhes que enviassem um helicóptero para evacuar o ferido. Em poucos minutos ficou a saber que a Força Aérea não se arriscaria a deixar sair um Helicóptero da Base a poucos minutos do pôr-do-sol. A operação demoraria uma meia hora e seria então noite escura. Nem pensar!

          Sem saber muito bem o que fazer pusemo-nos a dar voltas à imaginação tentando descobrir uma solução para sair daquele aperto. Tínhamos garroteado as pernas do ferido no ponto mais alto das coxas, mesmo por cima dos restos das calças. Ele cada vez gritava mais alto. As dores deviam ser infernais. Do lado do Alferes não saía ordem nenhuma. Às tantas virei-me para ele e propus-lhe que puséssemos o ferido em cima do Unimog e partíssemos em direcção a Metangula, com um pequeno grupo de protecção. Ele olhou para mim incrédulo e disse:
- "Isso é uma loucura. Se vos apanham aí na picada matam-vos a todos!".
- "Mas se ficarmos aqui até de manhã o seu subordinado morre pela certa!".
- "Mas podem morrer todos para salvar um".
- "É o risco que temos que correr".
- "E quem é que vai?".
- "Vou eu e o meu camarada Fuzileiro, o condutor do Unimog e o seu ajudante. Basta arranjar mais dois voluntários que nos queiram acompanhar".
- "Ok, acho que tens razão. Eu vou contactar o pessoal de Nova Coimbra, para ver se podem ir ao vosso encontro".
          Passamos o Unimog para o outro lado do riacho. Deitamos o ferido em cima de um colchão de borracha insuflável que surgiu não se sabe de onde e preparámo-nos para partir. Aquele soldado que estivera envolvido na explosão e um amigo dele, foram os dois escolhidos para completar o grupo.
          Todas as outras pontes que passamos estavam intactas e rodávamos a toda a velocidade que a viatura e a estrada nos permitiam. A meio do caminho encontramos a patrulha de Nova Coimbra que vinha ao nosso encontro. Fizemo-los dar meia volta e aceleramos montanha abaixo. Meia hora depois estávamos na nossa base e o ferido na Enfermaria com toda a equipa médica à volta dele.
          Na manhã seguinte, ainda o sol mal iluminava a península de Metangula, chegou o Helicóptero para efectuar a evacuação. O Soldado, de quem nunca soube o nome, e o nosso camarada com o tornozelo perfurado por um estilhaço, foram levados para o Hospital de Vila Cabral. Dali seguiram para Lourenço Marques e mais tarde para Lisboa. Foram tratados nos Hospitais militares do ramo das FA’s a que cada um pertencia. A Metangula chegaram notícias de que tudo tinha corrido bem e a vida deles não corria qualquer risco.

          Passaram-se mais uns meses e a minha Companhia foi rendida no Niassa, regressando à capital da Província. Era tempo de preparar as coisas para a nossa partida para a Metrópole. Já de regresso à Escola de Fuzileiros procurei informar-me do destino que levaram os dois feridos no rebentamento daquela mina.
          O Fuzileiro usou e abusou da baixa médica e meteu-se em encrencas em Lisboa, durante esse período. Como castigo foi enviado para a Guiné e incorporado numa companhia que lá prestava serviço.
          O Soldado, com as duas pernas amputadas, fez um longo período de recuperação e foi depois enviado para a Alemanha. Foi entregue aos cuidados de uma clínica especializada em próteses que lhe dispensou um tratamento cinco estrelas. Quando regressou a Portugal, muitos meses depois de eu ter abandonado a Briosa, mexia-se com tanto à-vontade, em cima das pernas artificiais, como se já usasse aquilo há anos. Isto vim eu a saber por intermédio de alguns conterrâneos que continuaram na Escola de Fuzileiros por mais algum tempo.
          Naquele dia, na estrada do Caracol, de Maniamba para Metangula, com um pouco mais de azar podíamos ter morrido os quatro. Mas como viram, com um pouco de sorte e algum arrojo, não morreu nenhum.»

2 comentários:

  1. Interessante relato... 3 depois anos passaria eu pelo mesmo local.
    Valdemar Alves

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  2. Obrigado meu caro, por todo o trabalho desenvolvido em prol dos bons ofícios da Marinha de Guerra.
    Este testemunho do Camarada Fuzileiro, ficaria preterido do conhecimento, de um grande número de pessoas. – quais são os muitos milhares de visitantes do blogue barcoávista . Congratulo-me com o conhecimento desta história, partilhada por Camaradas Fuzileiros, em que a sua determinação perante uma tão grave situação, de um Combatente do Exercito surtiu o seu efeito. Conseguir que o oficial do grupo fosse levado a ceder aos seus argumentos, foi fazer a diferença, também nestas situações, tivemos notas de muito valor. Foram muitas os momentos complicados em que estiveram envolvidos os nossos homens, que de forma determinada obrigaram a posturas, - impensáveis de outros responsáveis, utilizando argumentos e disponibilidade, para também enfrentar os riscos, como é o exemplo esta passagem vivida por combatentes, deste Portugal; que os despreza. Um forte abraço.

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