03/04/12

"HISTÓRIAS À VISTA" - 03

          3.ª “HISTÓRIA À VISTA”, da autoria do FZE Mário Manso, personalidade carismática da Associação de Fuzileiros, versando sobre ocorrências nas suas duas Comissões de serviço em Angola, pautadas por valores como a Camaradagem, Espírito de Corpo e Sentido do Dever (cívico e militar).

COINCIDÊNCIAS DA GUERRA:

          «Há coisas que presenciámos, que nos marcam de forma muito intensa e para toda a vida. Um dia decorria o ano de 1962, depois de mais uns jogos de matraquilhos no Bairro Alto, onde uns quantos chulecos, que por ali sobreviviam usando os seus expedientes, me resgatavam para com eles jogar, confrontando o seu dinheiro em apostas por cada jogo, com outros habituais adversários.
          Certo dia, de um momento para o outro, arma-se um arraial de pancada, onde estavam envolvidos mais de meia dúzia de combatentes, sendo três deles marujos de cordão vermelho no braço esquerdo. Eram umas máquinas na arte de bem bater de tal forma, que me levou mais tarde a ir prá Marinha e para os seus Fuzileiros, a esses Camaradas devo em certa medida a minha decisão afectuosa. Aconteceu em conversas à posterior, já na Escola de Fuzileiros vir a falar dessas cenas, com dois desses três intervenientes.
          Este foi o princípio de uma longa caminhada que, a dias de fazer 50 anos de ter entrado na Escola de Vale de Zebro, eu sinta que valeu a pena ter feito tal opção.

          Depois de cumpridos todos os testes da escolaridade necessária para obter o direito à Boina, sou de seguida integrado num Destacamento de Fuzileiros Especiais que cumpriu uma Comissão de quase 26 meses em Angola. É desta unidade que foram premiados os primeiros feridos e morto, em combate nesta província ultramarina.
          A mim calhou-me, a primeira bala a marcar um Fuzileiro neste território. Também na mesma operação, mais dois Camaradas foram feridos, tendo um falecido e o outro ficado deficiente. Passados alguns dias, sou chamado ao Comando Naval de Angola à presença do Sr. Almirante, se bem me lembro de nome Laurindo dos Santos.
          Tentou convencer-me a vir de avião para Lisboa para recuperação. Disse-lhe que gostaria mais de ir com os meus Camaradas para o Zaire! Ele voltou de novo a insistir para que aproveitasse. E foi com alguns argumentos, que hoje reconheço um pouco imbecis, porque reflectiram alguma ignorância, que lhe voltei a manifestar o meu desejo de ir com o Destacamento. Pois que mesmo limitado podia contar com todos eles. Pois ali estavam os Camaradas, que disseram ao Telegrafista, que avisasse o Piloto, que ou pousava, ou levaria uma rajada, porque mostrava estar amedrontado e com receio de me ir recolher.
          E foi com estes pressupostos que consegui demover o Sr. Almirante, a deixar-me seguir com a minha unidade de combate. Fui parar ao posto do Tridente, o mais a montante do Rio Zaire, antes de Nóqui onde havia um Quartel do Exército e o rio deixava de ter a sua margem esquerda a banhar onterritório de Angola.
          E foi deste local onde alguns dias depois de ali termos chegado, que também andei, mesmo limitado, a levar de bote Soldados da margem Angolana, onde tinham caído numas armadilhas por eles mesmo colocadas, tendo nessa noite, feito algumas viagens transportando-os até Noqui.
          Só mais tarde apercebi-me que a intenção do Sr. Almirante era atribuir-me o prémio Governador-geral de Angola. Nem tudo foi perdido porque um louvor, deu-me a hipótese de não pagar as propinas da minha Filha quando frequentou a Universidade, o que não foi mau.

          Volto de novo a uma 2.ª Comissão, passados cinco meses de ter regressado da anterior. Uma curiosidade, é que o Cte. era o mesmo e nesta unidade mais de 30 elementos farão também da sua segunda Comissão.
          Quando de novo em Cabinda na Lagoa do Massabi, tive a incumbência de matar a malvada ao pessoal, como Cabo de rancho. Este cargo dava-me uma certa liberdade, pelo que levou-me a ocupar parte de algumas noites a fazer “psicó”, num povo que se situava a mais ou menos 30 minutos de bote do nosso posto. Ai ficava enquanto a patrulha cumpria a sua missão na lagoa, fazendo companhia a uma Maria que já antes na 1.ª Comissão tinha-me desafiado.
          Ao falar nisto hoje, arrepio-me do perigo que se é capaz de correr, por aquela coisa! É também na permanência naquele posto que certo dia com um outro Camarada, resgatámos 03 homens do Exército nas margens da lagoa, que se haviam perdido quando na manhã do dia anterior, tentaram nas imediações do seu Quartel ido fazer uma caçada, mas por se terem desorientado ali vieram ter.
          Quando experimentávamos a operacionalidade de um motor, com registo de avaria da última patrulha, e relativamente distante do nosso posto, ouvimos tiros! Pela experiência, logo apercebi-me de que eram tiros a denunciar a presença, pelo que, avançamos até à margem e os recuperamos. Caso passasse a patrulha na altura, teria sido mais complicado, por alguma manifesta menos experiência e poderiam abrir fogo, sentindo-se emboscados.
          Levados para o posto, com eles não estive mais de uma hora, tempo que mediou o dar-lhes de comer e beber, e a chegada dos carros para os levar para o seu Quartel, que entretanto tinha sido informado, este que ficava ainda a um razoável distância, homens que nunca mais vi, mas mesmo assim, anos mais tarde venho a encontrar-me com um desses elementos, na altura namorado de uma amiga da minha hoje Mulher. Uma pura mas grande coincidência!
          Depois das apresentações feitas pela minha namorada, logo lhe disse que o conhecia de qualquer lado! Depois de exploradas várias hipóteses, disse-me que tinha estado em Cabinda, de imediato perguntei-lhe se não era o camarada caçador do Exército que se tinha perdido e um dia foi recuperado pelos Fuzos nas margens da lagoa do Massabi? É claro que foi um momento de alguma emoção, porque tantas vezes já tinha falado no caso, e sempre dizia que muito gostaria de nos encontrar! Hoje o Mário Manso e o Mário de Sousa são dois grandes Amigos - mesmo dois irmãos.

          Alguns dias depois, aconteceu um jogo de futebol com um grupo dos chamados “T’ÉS grupos de guerrilheiros” que se tinham entregado. Como Cabo de rancho coube-me, fazer as honras da casa ao Sargento que com os outros elementos almoçaram connosco. Logo tomei a iniciativa da conversa, começando por a orientar no sentido de saber coisas da guerrilha.
          Depois de debitar-me locais de treino, forma como entravam depois no território Angolano e a sua deslocação até aos pontos destinados a cada grupo, foi um desenrolar constante de acontecimentos emoldurantes, alguns deles por mim já vividos entre 63/65, com algumas peripécias deveras interessantes.
          A certa altura do meu questionário, ele diz-me que em fins de Março 1964 um grupo muito complicado lhes tinham queimado os acampamentos e destruídos os seus mantimentos, etc, etc. A certa altura da conversa, logo que me falou na casa de zinco e mata vinte e oito de Maio, eu já com os pêlos em pé!
Pergunto-lhe:
- "Então e não deram tiros no pessoal?".
- "Sim logo à entrada da mata fizemos emboscada e matámos!".
- "Então, como é que sabe?" Questionei.
- "O heli foi buscar morto.".
          Como estava de calções, levantei-me e disse-lhe que esse morto era eu. Ao mesmo tempo que lhe mostrava o local onde tinha levado o tiro, retribui-me de imediato de forma angustiante, levantando a camisa para amostragem das suas cicatrizes daquela “nossa” guerra.
          O desespero estava bem patenteado no rosto daquele ex-guerrilheiro, mas que eu logo acalmei com um abraço, deixando-o assim mais calmo. Foi um momento também, muito especial da minha vida esta coincidência, em que dois ex-inimigos, que antes se confrontaram estavam agora ali frente a frente, desta vez do mesmo lado da barricada.

          Quando estive no Hospital Militar, um Médico de Marinha que lá tinha-me assistido, tinha prometido um almoço aos seus colegas, quando lá aparecesse um Fuzo ferido. Certo dia, uns anos mais tarde estando o meu Pai doente, o Médico da Caixa de Previdência é chamado, e logo que entrou disse para comigo:
- "Conheço esta cara!".
          Quando no final da consulta perguntei-lhe se não tinha estado no Hospital em Luanda e disse-me que sim, interroguei-o se não se lembra de mim? Respondeu-me perguntando-me: se eu não era aquele primeiro Fuzileiro ferido em Angola, na operação onde houve mais dois baleados tendo um morrido, e que lhe tinha feito perder um almoço? Os dois tínhamos acertado nos palpites.
          Estas quatro coincidências marcaram-me para todo o sempre! Como é que isto pode acontecer!? Isso deve-se provavelmente a uma outra guerra; mas sem armas».

Fuzileiro uma vez, Fuzileiro para sempre!...

3 comentários:

  1. ...SEM PALAVRAS...A VOZ EMBARGADA apenas me deixa dizer-te...Abraço de fuzileiro.

    ResponderEliminar
  2. Joao Carlos Almeida4 de abril de 2012 às 23:29

    Subi tantas vezes esse rio ate Noqui,parece que ainda foi ontem.

    ResponderEliminar
  3. São estes testemunhos que ao longo dos anos criaram a MISTICA dos FUZILEIROS PORTUGUESES .
    UM ABRAÇO A TODOS OS FUZILEIROS e como diria o ciganito á mãe : QUERO MAIS !

    ResponderEliminar

Grato pelo seu comentário, prontamente estará visível!