01/05/13

“HISTÓRIAS À VISTA” - 29

          29.ª “HISTÓRIA À VISTA”, da autoria do CMG REF Lopes Mendonça, à época dos factos 2.º Tenente, Comandante da Secção de Mergulhadores-Sapadores n.º 1. Este artigo foi redigido originalmente para o site do Curso da Escola Naval de 1961  "Nuno Tristão" (http://www.cursont.pt/cnt/index.html), a quem agradeço a cedência deste artigo, nomeadamente ao Cte. Alves Jesus.

GUINÉ - 1968 "E LÁ, PUS A PATA NA POÇA..."

          Vários camaradas têm vindo a sugerir que relate a minha "epopeia" por terras da Guiné-Bissau. Tem sido difícil arrancar a passagem à escrita, do que me vai na memória, do ocorrido em tempos idos - quarenta e três anos passados.
          Sem que nada o fizesse prever, em Maio de 1968, era eu um jovem Segundo-Tenente, fui nomeado, para substituir, na Guiné, o Comandante da Secção Número 1 de Mergulhadores Sapadores (SECSAPAMARUM).
          A trouxa foi arranjada, as vacinas postas em dia e numa bela noite de Maio, três Oficiais da Marinha ocupam os seus lugares no avião que os levaria ao aeroporto de Bissalanca. Curiosamente os três eram futuros Comandantes de Unidades navais.
Os primeiros contactos com a Guiné não agradam, antevêem um clima inóspito, quente e húmido.
          Em Bissau, a chegada de avião vindo de Lisboa era a quebra de rotina... o dia de São Avião. Os militares vinham até ao aeroporto recolher notícias da "metrópole", receber encomendas que um portador trazia. Era também motivo de convívio.
          Feitas as apresentações, que as praxes militares e os seus protocolos obrigam, cada um dos Oficiais seguiu para as suas Unidades.
A partir desse dia seguiu-se o render de comando da Unidade de Mergulhadores.
          O Comando foi-me entregue com enorme cuidado e todo o pormenor pelo Marques Pinto que, zeloso, demorou cerca de um mês a elucidar-me de todos os pormenores militares e civis.
          Ainda planeámos, em conjunto, a mudança de hélices de uma lancha da classe "Argos", feito considerado, na altura, de muito importante. Provou-se que os Mergulhadores tinham capacidade técnica para, debaixo de água, mudar um hélice de 420 quilos. Infelizmente o Manel não pôde assistir à execução, pois já tinha regressado a Lisboa.
          A vida decorria normalmente, os trabalhos de rotina passavam-se entre a Secção de Mergulhadores e o Serviço de Armamento, de que tinha herdado a sua chefia.
          A SECSAPAMARUM acorria a apanhar armamento caído ao mar, ajudava a desobstruir rios, fazia os seus treinos especiais na ilha de Bolama. Fez parte da equipa que foi socorrer a LDM (Lancha de Desembarque Média) 302, que tinha sido mais uma vez bombardeada e totalmente danificada, lá para as bandas do Cacheu, muito próximo da futura base de Ganturé. Tive aqui a primeira noção dos horrores da guerra e da sua brutalidade. Lembro-me perfeitamente do estado psicológico e físico em que encontrámos o Patrão e o Artilheiro da LDM, bem como dos danos sofridos na lancha.
          No Serviço de Armamento procurava-se manter em estado operacional todo o equipamento, munições e explosivos atribuídos ao Comando da Defesa Marítima da Guiné. Muita burocracia, muito papel se despendia para se dar um tiro; afinal estávamos em guerra...
          A família tinha chegado a Bissau em finais de Julho. Mulher e filha iniciaram-se na partilha da vida nestas terras africanas. A filhota teve grandes problemas de adaptação ao calor húmido.
          Entretanto tinha-me recusado, por escrito, a "comandar" os comboios a Bedanda não pelos perigos que estes comboios sofriam, com ataques em locais estreitos, já conhecidos, mas sim por uma questão de princípio. Se tinha sido nomeado Comandante de uma pequena Unidade naval, exigi que me desnomeassem dessa Unidade e me nomeassem para a outra. Isto causou certo burburinho, pois era mais complicado fazer do que ordenar. Mas ganhei esta batalha e o respeito dos superiores.
          Em finais de Agosto de 1968, tive conhecimento que um Destacamento de Fuzileiros tinha deparado numa clareira junto à foz do rio Cujanene (pequeno afluente do rio Cacheu) com um conjunto de minas, cerca de 10, que ainda se conseguiam detectar. Após uma pequena reunião com os restantes 5 elementos que constituíam a Unidade de Mergulhadores, fui ao Comando da Defesa Marítima informar que a Secção Número 1 de Mergulhadores Sapadores estava pronta para destruir o campo minado ou proceder à inactivação do armamento, caso fosse necessário. Ao contrário do que esperava, começaram a ser levantados vários problemas:
- ”Então o senhor ainda há pouco tempo recusou-se a ir no comboio de Bedanda e agora vem com esta?"; "O Mendonça sabe que por cada mina levantada recebe-se 100 escudos?"; "O Destacamento de Fuzileiros é que as descobriu e agora os Mergulhadores é que ficam com o dinheiro!".
          Estas e outras questões levantadas levaram a que só 15 dias depois a Unidade recebesse ordem para a destruição do campo de minas.
          É interessante sublinhar, que o que acelerou a ordem foi a declaração assinada individualmente por cada Mergulhador, informando que se escusavam a receber qualquer dinheiro ou benesse, motivada pela destruição do campo de minas e propunham a entrega do dinheiro na sua totalidade à Cruz Vermelha.
          16 de Setembro, ao alvorecer, a LFG (Lancha de Fiscalização Grande) "Orion" deu fundo ao ferro próximo da foz do rio Cujanene, perto do local onde tempos antes a LDM 302 tinha sido bombardeada.
          Preparado o material e equipamento, seguimos para o local do campo de minas em botes de borracha, devidamente escoltados por elementos do Destacamento de Fuzileiros.
          Após um breve reconhecimento da zona, constatou-se que as minas já estavam submersas no lodo e nem um rasto se avistava que desse indício da sua localização.
          Avancei, de acordo com o que tínhamos planeado, com mais duas Praças para o local onde se presumia estarem colocadas as minas. Utilizamos a técnica da deslocação de joelhos, com uma sonda metálica para picar o terreno. Os métodos mais modernos, como detector de metais ou de variação de campo magnético, ainda não existiam na Marinha.
          A primeira mina foi detectada. Com a calma possível estudámos a morfologia do terreno que a circundava e como o solo era apresentado. Este estudo foi de importância fundamental, pois ajudou-nos a detectar as 14 minas existentes no local. Cada mina detectada era sinalizada com uma pequena bandeira.
          Para a área da clareira, a densidade de minas colocadas era enorme. O número de minas detectadas condizia com o anteriormente mencionado pelos Fuzileiros. Considerámo-nos com imensa sorte, pois num tempo relativamente curto e sem grandes problemas, estávamos a cumprir a nossa missão.
          Restava só montar e colocar as cargas explosivas necessárias para proceder à sua explosão e destruir o campo minado. Esta tarefa esteve a cargo do Sargento e das outras Praças.
          Observava a forma como estavam a ser colocadas as cargas e a sua ligação, na zona que tinha sido "batida" por nós e onde nada indiciava que se ocultasse mais alguma mina.
          Em determinada altura, ao apoiar-me com mais força sobre o pé direito, lembro-me de ter ouvido um clique metálico e.... depois foi tudo muito rápido, sentindo-me como que a cair num colchão de penas, com muitas penas à minha volta. Só me lembro de me encontrar deitado num bote de borracha com o Marinheiro (hoje Oficial Superior, o CFR Malagueta Pais Mamede), a fazer um garrote na minha perna direita (de tal forma apertou a perna que ainda hoje me dói). O Sargento Rodrigues Neves é que teve a coragem de me erguer do campo minado, em cima do qual tinha caído, e colocado no bote.
          Devido à forma como o Pais Mamede me tratou não entrei em estado de choque. Sei que berrava, não de dor mas de raiva, e ele deu-me um berro para me calar. Calei-me e consegui manter a calma que nestas alturas é tão necessária.
Seguiu-se a evacuação, primeiro para a LFG.
          O transbordo do bote para a LFG foi dramático. Lembro-me de ouvir o Pais Mamede gritar:
-"Ajudem-me, já estou sem forças e daqui a nada o homem cai à água".
          O pessoal que estava no convés da LFG ao ver-me deve ter ficado horrorizado e a sua primeira reacção foi de fuga. Quem da lancha deu a primeira mão foi o então Governador-Geral António de Spínola que, com o seu exemplo, evitou que desse um mergulho forçado.
          Com os cuidados possíveis, fui parar ao refeitório das Praças, improvisado em sala de primeiros socorros. Aí fui assistido por dois Médicos e vários Enfermeiros (na altura estava a decorrer uma operação com Fuzileiros e por isso estava a bordo uma equipa de pessoal de saúde). Enquanto estava a ser assistido, ouço a voz do Sargento Neves:
-"O campo acaba de ser destruído. Cumprimos a missão!".
          Estabilizado, fui embarcado numa Lancha de Desembarque, passado para terra no cais de Ganturé, e dali para um helicóptero.
          Ao embarcar no helicóptero, mais um percalço, a Enfermeira Paraquedista só me embarcava com uma transfusão de sangue. Os Médicos bem diziam que não era preciso, mas ela recusava-se a fazê-lo. Os Médicos acabaram por ceder e lá vim com o saco do sangue pendurado (ainda hoje me pergunto se não foi esta transfusão a responsável por uma mononucleose infecciosa que contraí mais tarde no nosso Hospital da Marinha). No trajecto até Bissau, por estar consciente, tive a oportunidade de ver um tornado em formação; que espectáculo maravilhoso!
Depois, seguiram-se várias peripécias e, para não enfastiar muito o leitor, irei referenciar apenas algumas.
Já na sala de operações, o Soldado maqueiro pede-me autorização para cortar as minhas cuecas...
          Ainda no Hospital 243 (o Hospital Militar de Bissau), quando me faziam a higiene diária, a Enfermeira informa-me que o ditador Salazar tinha caído de uma cadeira e o seu estado tinha prognóstico reservado. À minha afirmação de que esse "sacana" devia ter morrido, tive como resposta uma forte dor no escroto. Ela tinha-me retirado um enorme estilhaço de madeira sem aviso prévio. Mais tarde vim a saber que era casada com um PIDE.
          A minha chegada ao Hospital da Marinha também a retenho, pois além da família que me foi esperar, tive uma sensação extraordinária ao ver e sentir os lençóis da cama que me albergou durante quase 3 longos meses. Os lençóis eram muito brancos e aveludados, há já muito que não sabia o que era esta palamenta.
          No Hospital da Marinha a vida passou a ser rotineira, extraordinariamente bem tratado. Partilhada com muitos camaradas que se "aboletavam" no quarto para verem os Jogos Olímpicos, que pela primeira vez apareciam naquela maravilhosa pantalha. Retenho dessa época o parceiro de infortúnio, Segundo-tenente Sarmento Coelho, Fuzileiro da Reserva Naval, evacuado de Angola com 18 tiros no corpo, tendo por isso ficado a ostentar o título de "Coelho à caçador".
          Foi ainda no Hospital da Marinha, que ao ler a Ordem, tive conhecimento de que o meu acidente tinha sido considerado em "Serviço". Fiquei extremamente combalido e indignado. Valeu-me o meu Pai, que também indignado com o desfecho do despacho, falou com o seu amigo, o então Ministro da Marinha Manuel Pereira Crespo, que de imediato alterou o despacho para "Campanha". Na altura, para ser considerado em combate, pressupunha-se haver troteio.
          Depois do Natal, passado em família, vieram os preparativos para receber uma prótese. A Marinha, como sempre, procurou o melhor local e decidiu-se por me enviar para a Alemanha, Hamburgo, talvez explorando os acordos da Base de Beja. Seguiu-se um período de triagem, que obrigatoriamente tinha de ser feito no Hospital Militar Principal, num anexo sito na Av. Artilharia Um em Lisboa.
          Ainda guardo a sensação de ter passado a fazer parte das personagens da "Divina Comédia" (Inferno) de Dante, quando, pela primeira vez, fui à consulta. Essa sensação de difícil descrição é única e só aqueles que por lá passaram poderão partilhá-la. Homens sem mãos, sem pernas, cegos, surdos, tetraplégicos, de tudo um pouco circulava, sem direito a se exporem fora das 4 paredes. Era assim que o fascismo escondia dos olhares do povo os mártires / estropiados da Guerra Colonial.
          De Hamburgo, as poucas recordações que tenho são boas e dignas de registo. Foi lá que coloquei a minha primeira prótese e comecei a andar, só por si é mesmo um facto extraordinário. A equipa médica e de enfermagem tinham uma dedicação ímpar (todos eles, em momentos diferentes, foram homenageados pela ADFA - Associação dos Deficientes das Forças Armadas). Guardo também dois tipos de solidariedade e entre ajuda; a dos pacientes que partilhavam a mesma enfermaria (Oficiais, Sargentos e Praças) e a dos portugueses emigrantes que nos visitavam e connosco conviviam.
Após três meses de estadia em Hamburgo regresso a Portugal.
          Estamos em 1969. Esse ano passei-o quase todo de licença da Junta. Foram muitos os camaradas do NT que me visitaram e deram solidariedade. O papel que eles desempenharam na minha reabilitação foi muito importante. Na altura ainda não haviam psicólogos e técnicos avançados na terapia de grupo. Foram eles e nós deficientes que desempenharam esse papel. Peço que me desculpem não mencionar os seus nomes mas, com receio de me esquecer de algum, prefiro deixar assim.
          A meu pedido, regressei às fileiras voltando para a Escola de Mergulhadores. Queria provar a mim próprio que era capaz de voltar a mergulhar. E consegui-o!.
          Mais poderia contar... Tal como o papel dos Oficiais, Sargentos e Praças na minha inclusão na "família dos Mergulhadores", pois a eles devo muito o ultrapassar dos medos e receios de voltar a mergulhar sem um pé.... até me adaptaram um fato e manufacturaram umas canadianas, numa liga mais própria para andarem dentro de água.
          Em 1976, essencialmente por força do Decreto-Lei 43/76 de 20 de Janeiro, tomo a difícil resolução de passar à reforma. Este diploma, embora reparasse muitas injustiças e clarificasse situações, não permitia a quem optasse pelo serviço activo, prosseguir a sua carreira até ao mais alto posto da hierarquia.
          Passei a dedicar-me à luta desenvolvida pelo Movimento dos Deficientes Portugueses e suas famílias pela melhoria da qualidade de vida desta camada social e pela sua inclusão na sociedade. Até aos dias de hoje é nesse Pelotão que marcho...

4 comentários:

  1. Obrigado por nos ter trazido estes tão reais acontecimentos na sua vida, enquanto ao serviço de Portugal na Marinha de Guerra. Infelizmente para todos os Combatentes, alguém fora deles, teve vergonha, de que se tivesse dado a conhecer o que por lá passaram os militares, na chamada guerra colonial. Eu não tenho vergonha de ter contribuído com quatro anos e meio da minha vida, nessa guerra, porque era Militar, e não politico. Custa-me muito, é a indiferença como somos tratados! Os meus parabéns, ao Comte Lopes Mendonça a quem deixo um abraço, e também, ao blogue BARCO À VISTA

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  2. Tive o prazer de mergulhar com este ilustre oficial num mergulho de rotina trimestral a que nós vigias éramos obrigados, lembro-me de ter ficado impressionado com a maneira corajosa como este camarada enfrentou o infortúnio e da brilhante técnica com que mergulhava só com uma barbatana. Saudações

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  3. Sr. Comandante,
    Excelente relato e de pormenor invejável quando já se passaram 43 anos aquando da sua publicação.
    Lembro-me ainda de o ir visitar ao hospital, tinha eu uns 6 anitos, com o meu pai e a minha mãe. O meu pai era o Sargento Neves, e esta passagem era uma das sempre recordadas quando as conversas se prolongavam depois das refeições.
    Cordiais cumprimentos.

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    1. Por alguma falta de atenção, o comentário que ontem postei aparece como anónimo.
      Aqui vai a tentativa de reparação desta falta.
      Meus melhores cumprimentos.

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