26/05/13

“HISTÓRIAS À VISTA” - 30

          30.ª “HISTÓRIA À VISTA”, da autoria do 1.º Comandante do Navio de Apoio “NRP São Miguel” - CMG REF Oliveira e Costa (1985-1988), narrando a partida do NRP "São Miguel" dos Açores e chegada aos EUA.
 
MEMÓRIA N.º 11: It's a sign of good luck!
 
          Deixei o Porto da Horta com um sentimento de magoada tristeza… para logo a seguir ser despertado, como por uma bofetada, pela visão imponente da vertente do Pico, iluminada por um sol forte em tarde sem nuvens, encimada por um chapéu de neve branca e luzente. Vivera aquela imagem durante cinco anos da janela do meu gabinete, na Capitania, e o seu poder hipnótico continuava omnipotente.
          Alterámos a proa para Sul e depois para W aproveitando a sota, de mar e vento, que a Ilha nos oferecia. O tempo estava bom. Com os Capelinhos à vista já se fazia sentir a ondulação e foi com eles para ré do través que fomos jantar. O navio tinha um comportamento melhor do que quando chegara ao Faial. O jantar foi agradável, como de costume. Era sempre agradável quando nos reuníamos.
          Pela frente tínhamos uma singradura franca, de oito dias, sem obstáculos, até aos “States”. Ficámos na Ponte até depois da meia-noite gozando o convívio, o tempo calmo e uma silenciosa noite, inocente e maravilhosamente enluarada. Sem navegação à vista havia mais proximidade entre todos. Estávamos de novo sozinhos no mar imenso mas, desta vez, sabíamos de muita gente preocupada connosco e com o sucesso da missão. Era um sentimento gratificante.
          Apesar de estar fora de Lisboa continuava a manter contacto diário com o Gabinete do CEMA dando conta do nosso dia-a-dia. Aí, no Comandante Abrantes Lopes, tinha um atento, preocupado e muito amigo ouvinte. Amizade que se fortalecera nos Açores comigo na Horta, Ilha do Faial, e ele no Comando Naval dos Açores, Ilha de S. Miguel.
          Quando da Dinamização Cultural, no Arquipélago, não autorizei uma Sessão de Esclarecimento, na Estação Rádio Naval da Horta (ERNH), de que era Director por acumulação, dentro do período de serviço remetendo para fora dessas horas a sua concretização nas vezes que fossem consideradas necessárias e oportunas.
          O Cabo de manobra encarregue desses esclarecimentos sentindo-se desautorizado, voltou ao navio, que o levara até ao Faial e, regressado a S. Miguel, “exigiu o meu saneamento imediato” ao Comandante Emanuel Ricou, então Comandante Naval dos Açores. Na qualidade de Capitão do Porto e de Director da ERNH, participara em todas as Reuniões, Assembleias e Sessões de Esclarecimento levadas a efeito, na Ilha do Faial, após o 25ABR, onde o Capitão do Porto, Comandante Militar, Comandante da Guarda-fiscal e Comandante da PSP tinham lugares “cativos”.
          O Comandante Naval reuniu com o seu Estado-maior e aí valeu-me a posição assumida pelo então Comandante Abrantes Lopes. Mais tarde, no Comando da Defesa Marítima do Porto de Lisboa (CDMPL) o mesmo Cabo, cruzou-se comigo, não deixando de me criar algumas situações no mínimo embaraçosas, na qualidade de Patrão da LDM, atribuída ao “Serviço de Combate à Poluição do Mar por Hidrocarbonetos” e, estacionada na Doca do Bom Sucesso, na área do CDMPL. Enfim… pessoalmente, não lhe guardo qualquer ressentimento ou malquerença. Ponto final.
          O tempo foi passando e a amizade foi-se fortalecendo. No NRP “São Miguel” foi, o Cte. Abrantes Lopes, então colocado no Gabinete do Almirante CEMA, um dos seus “Anjos da Guarda”. Diariamente comunicava com o gabinete dando conta da vida a bordo. Apesar de ter uma guarnição experiente e unida era perceptível o “amansar” de cada um, como que baixando o seu “metabolismo”, conforme se ia entrando mar adentro! Navegando numa área sem navegação os dias ficavam mais longos e calmos.
          Formavam-se grupos, no exterior, antes das refeições e, depois dos serviços, era ver o pessoal pelo convés e pela tolda em amena cavaqueira, que o bom tempo convidava, desfrutando da vida que, ali no mar sem fim, nos era proporcionada e onde eu aproveitava para, “en passant”, aquilatar da disposição e sentir do pessoal.
          À mesa o “faz favor”, “obrigado” e “com licença” fazia parte da refeição! Respirava-se boa disposição, respeito, consideração, alegria e muito entusiasmo. A Missão começara de forma auspiciosa! Como desejava que aquele convívio se prolongasse pelos próximos quatro meses! Esperava que aquela delicadeza de trato não fosse “arranhada” deixando perceber o surgimento de um qualquer cansaço interior.
          Tínhamos deixado a cidade da Horta e oito dias depois, numa viagem calma e sem incidentes, fazíamos a aproximação a “Ambrose Light” onde contávamos chegar aos primeiros alvores. Já na véspera o mar começara a coalhar-se de navegação surgindo do nada e de todas as direcções e, ao fim do dia qual “caminho da formiga”, dava para entender a existência de um Canal de Navegação para e de “Ambrose Light”.
          A noite estava escura como breu. Reduzimos a velocidade e só com luzes de navegação “alinhámos” o navio pelo canal! Lembrei-me da primeira saída, dois anos antes, quando passámos pelas “Lanes”, no Cabo de S. Vicente, só que nessa altura já íamos com os primeiros alvores e agora mais parecia que navegávamos num ninho de vespas em ocultação de luzes!
          Cinco milhas antes de “entrar na rotunda” de “Ambrose Light” contactámos, via rádio, com a unidade da “Guarda Costeira” que ali se deslocara para nos dar as boas vindas e “indicar” o caminho. Às tantas pediram-nos para ligar as luzes do navio pois não nos identificavam… Quando as “acendemos” percebemos alguns risos pois navegavam meia milha à nossa proa.
          Saboreámos o momento e cumpridos os procedimentos continuamos para MOTBAY. A confusão gerada, viemos depois a saber, deveu-se a não termos a silhueta tradicional de navio de guerra e trazermos pintada a faixa, encarnada e fosforescente, por cima das janelas da Ponte e a toda a sua largura, faixa obrigatória a toda a navegação mercante que demandasse os EUA, e que nunca retirámos mesmo quando mais tarde o navio foi pintado de cinzento.
          Fizemos a subida do rio com Piloto civil. Já perto do Terminal Militar um falcão, trazendo nas garras uma pequena ave que caçara, poisou no Pau Real, merecendo do Piloto o comentário:
- “It's a sign of good luck!”.
          Próximo do Terminal Militar embarcou outro Piloto, agora militar, que faria a entrada e atracação. Deu para ver que os dois “não se davam”! O civil, quando da entrada do militar, limitou-se a entregar-lhe o navio com um simples movimento da mão sentando-se, de seguida, na cadeira alta existente na Ponte, lugar que só deixaria quando desembarcou!
          Eu nos telégrafos, meu posto de faina (!). O Piloto militar colocou-se ao meu lado e ia dando as suas orientações. Depois de diversas manobras, que considerei desnecessárias, deu para entender que o navio iria demorar na atracação! Apesar de não haver nem corrente nem vento, atracar o navio por EB, com um só hélice de passo direito, deslocando cinco mil toneladas, 108 metros de comprimento, fundo chato e sem seguimento davam ao “São Miguel”, na ausência de rebocadores, um comportamento algo complicado para ele!
          Resolvi “ajudar” e quando no final de uma aproximação solicitou uma nova proa e “máquina devagar a ré” entendi abreviar a faina dizendo “assim como vai” e meti “máquina a ré toda”. Pelo canto do olho reparei no sorriso do Piloto civil que, continuando sentado, estendeu o braço direito com a mão fechada e polegar para cima, dirigindo-me um silencioso cumprimento.
          O navio atracou. “Fica assim. Amarra a ficar!”. Duas horas depois já todos tinham pisado o cais! Tínhamos feito oito dias de navegação calma e com bom tempo, sem avarias de registo. Dois dias antes de “Ambrose Light” começámos a ver navegação que ia aumentando conforme nos aproximávamos. A “calma do campo” estava a dar lugar ao “bulício das grandes cidades”. Todo o cuidado e atenção eram agora necessários.
          A vida a bordo era bem diferente da de um navio de guerra. Era o espaço, o ruído, o movimento do pessoal, o convívio e o reduzido número de pessoas que se juntavam. Havia mais tempo para pensar e isso deixava-nos mais “desprotegidos” fazendo com que mais facilmente nos conhecêssemos. Seguia com atenção o comportamento de todos e esperava manter o óptimo relacionamento que se verificara até ali.
          Para isso contava com o excelente conjunto de Oficiais embarcados e, em particular, com o Oficial Imediato possuidor de uma predisposição especial para conduzir homens. Contudo, com 12 dias viajados, interiorizei que a nível social e de bem-estar deveria dedicar especial atenção ao Sarg. Enfermeiro profissionalmente muito bom mas, socialmente, dado ao murmúrio fácil, por vezes raiando o quezilento.
          De facto o NRP “São Miguel” era um “convento no alto mar” convidando-nos a uma vida recatada, simples, silenciosa e contemplativa. O ruído que se percebia da Casa da Máquina fazia parte do silêncio que nos envolvia.
          Atracados no MOTBAY efectuámos o carregamento de uma muito reduzida parte, do que estava inicialmente programado, menos de 200 toneladas quando esperávamos embarcar 2.200. Foi uma constatação desagradável, para todos! Ali permanecemos cinco dias, que aproveitei para dormir na minha cama pois a navegar encostava-me no sofá da camarinha! Carregámos, passeámos pelas ruas de Newark e de Manhattan, oferecemos uma Recepção, onde fez sucesso o “nosso” Bacalhau à Braz acompanhado de vinho tinto tirado, directamente da pipa, pelos convidados! Um verdadeiro sucesso!
          Tivemos a companhia de alguns Oficiais portugueses em comissão nos EUA e que muito ajudaram ao convívio com as autoridades Portuárias e Navais presentes bem como com os elementos da Guarda Costeira, dirigentes de algumas Associações Portuguesas, sediadas em Newark, portugueses ali radicados e Luso-americanos igualmente convidados.
          No terceiro dia, de manhã cedo, fomos ao Banco Totta, em Manhattan, levantar o dinheiro para a viagem, conforme instruções recebidas em Lisboa. Nesses escassos e breves quatro dias, intensamente ocupados, saboreei alguns episódios que tentarei recordar numa próxima Memória! Por agora vou deleitar-me com as recordações destes 12 dias de mar…
Um abraço aos meus amigos e de forma especial ao Alm. Abrantes Lopes.

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