22/09/12

“HISTÓRIAS À VISTA” - 17

          17.ª “HISTÓRIA À VISTA”, continuando a publicação das memórias do 1.º Comandante do Navio de Apoio “NRP São Miguel” - CMG REF Oliveira e Costa (1985-1988).
 
MEMÓRIA n.º 4: O Sr. Dr. ...
 
          O “SÃO MIGUEL” ia a Moçambique levar ajuda alimentar. Só nós sabíamos o que tínhamos passado para alcançar o actual “estatuto”. Os “detractores” continuavam presentes e entendiam-se os seus murmúrios mas tínhamos já ganho prestígio suficiente para desmoralizar alguns e calar outros de prosaica verborreia não nos afectando minimamente nem as suas vozes dissonantes que, quantas vezes timidamente, iam fazendo ouvir do lado de fora do navio! Nada nos beliscava! Não havia dúvidas éramos uma guarnição feliz e disponível para o navio e para a Marinha.
          Largámos a 31AGO87 levando auxílio de emergência, em resposta ao apelo internacional do Governo de Moçambique, e possível pela colaboração de várias entidades nacionais e estrangeiras onde a Marinha de Guerra Portuguesa desempenhou papel importante. O plano de descarga do material seria mais tarde discutido, quando da chegada a Maputo, depois do governo moçambicano conhecer a composição da oferta, que iria contemplar não só os portos principais de Maputo, Beira e Nacala como também alguns núcleos populacionais ainda não referenciados nas cartas e localizados ao longo da costa aberta moçambicana.
          Estes locais foram-se formando e crescendo com a chegada de “deslocados” que ali encontravam condições de subsistência e de alguma segurança. Para o efeito tinham sido embarcadas em Lisboa quatro LARC’s, viaturas anfíbias com capacidade de transporte de 5 Tons. cada. Para além do transporte das ofertas, do Governo português e de entidades privadas, era ainda especificado, na Missão atribuída, o estreitamento dos laços de cooperação e de amizade com o povo moçambicano.
          Já em Maputo, foi com vaidade e orgulho que escutámos palavras do então Presidente do Conselho Executivo da Câmara de Maputo, que anteriormente desempenhara as funções de Embaixador de Moçambique em Portugal, afirmando ser esta uma viagem histórica pois tratava-se da primeira vez que um navio da Marinha de Guerra Portuguesa, o N.R.P. “SÃO MIGUEL”, escalava o seu país após a independência, demonstrando de forma clara e inequívoca o interesse nos laços de cooperação, e da tradicional amizade do povo de Portugal para com o povo de Moçambique!
          A nossa forma de estar e ser continuava a ser desejada… e agradecida! Embora de forma indirecta os dois anos de trabalho daquela jovial, empenhada, contagiante e incansável guarnição fora elogiado e em que termos! A Missão fora cumprida. O “SÃO MIGUEL”, qual ilustre viajante, fazia também história!
          Em 1987 já o “SÃO MIGUEL” cativara e conquistara mais interessados no seu crescimento e bem-estar mercê da atitude da sua guarnição, dentro da Marinha e fora dela. Para isso muito contribuíram as constantes visitas e convidados que trazíamos ao navio tanto de militares como de civis. Despertava a atenção de quem nos visitava, ou apreciava de fora, o movimento, azáfama e alegria que emergia do navio.
          A pequena guarnição desdobrava-se superando as dificuldades na adaptação às actividades, para que não estavam especificamente vocacionados, embora o entusiasmo demonstrado e a eficiência do trabalho apresentado demonstrasse precisamente o contrário. Tudo isto fazia parte de servir no “SÃO MIGUEL”. Havia sempre que fazer. Éramos todos polivalentes e raro, aquele que não se desenrascava sozinho, sempre que iniciava uma tarefa. Durante as horas de serviço havia sempre gente a trabalhar por todo o navio.
          No início era difícil aceitar o estado de abandono em que o mesmo se encontrava mas, com persistência, fomos recuperando tudo aquilo que considerávamos ao nosso alcance. Ainda recordo os meus primeiros dias a bordo sem iluminação e aquele ambiente bafiento e pegajoso, com um cheiro característico, sempre presente, de “chapa de ferro húmida”! Era gritante o contraste entre a actividade da guarnição, onde todos andavam numa roda-viva, e a morosidade sentida na satisfação das necessidades apresentadas pelo navio.
          A 06NOV85 foi o navio aumentado ao efectivo com o nome de N.R.P. “SÃO MIGUEL” mas a sua lotação só foi publicada em 20JAN87; no comments! A 9JUN87, apresentava-se o 2º Ten. Méd. João Pires. Simpático, disponível, com facilidade se integrou no espírito ousado dos que ali prestavam serviço ganhando rapidamente a consideração e amizade dos elementos daquela guarnição que o tratavam respeitosamente por Sr. Dr.. As horas de serviço eram completamente preenchidas e o seu entusiasmo para com o navio era igualmente contagiante.
          Era na verdade mais um da família onde além da sua especialidade colaborava noutras áreas onde aplicava os belíssimos conhecimentos de electrotecnia e de informática. Além da organização do serviço de saúde de bordo e do apoio à guarnição orientou e participou na instalação do sistema de video e de TV. Na altura recebêramos, por especial favor, um video da CORCINTO assim como três televisões a preto e branco, igualmente descartadas das corvetas, que foram instaladas na câmara dos Oficiais, câmara dos Sargentos e refeitório das Praças.
          Antes da saída para Moçambique o Dr. elaborou, com dados fornecidos por mim, Imediato, Engenheiro e por todos os responsáveis na ocupação dos espaços do navio, no seu ZX Spectrum, um programa de estabilidade para o “SÃO MIGUEL”, de imprescindível utilidade face às características do navio que navegava, normalmente (!), com uma altura metacêntrica entre onze e treze centímetros... Após o regresso a Lisboa foi este programa passado ao Comando Naval do Continente onde mais tarde foi melhorado e aplicado às corvetas!
          Durante a estadia em Moçambique, de forma discreta, o serviço de saúde do “SÃO MIGUEL” prestou assistência médica e medicamentosa a elementos civis e militares. As consultas sucediam-se de manhã até à noite tendo-se esgotado o material disponível, do Stock existente, em menos de três semanas.
          Ao Dr. João Pires se deve também parte da execução do filme feito, durante a viagem, onde praticamente se encontram registados os acontecimentos mais gratificantes, e não só, daqueles 111 dias que estivemos fora de Lisboa tendo sido entregue uma cópia no Estado-Maior da Armada que, como se esperava, não teceu qualquer comentário!
          Há já alguns anos que não nos encontramos mas, ainda hoje, com saudade o recordo, integrado naquela guarnição, bem-disposto, sorridente, disponível e com o seu inseparável busca-pólos no bolso da camisa!
 
Um abraço caro Dr.

5 comentários:

  1. A Marinha/Armada tem destas coisas! O humanismo dentro (de dentro) e fora (para fora).
    BC

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  2. Foi longo o meu percurso pela Marinha. Servi em vários navios e em muitas unidades em terra. Conheci muitos comandantes e imediatos. E guarnições. Ao ler as crónicas aqui expostas sobre o que foi o calvário dum comandante que com o seu pessoal transformou um "caixote" feito de ferro enferrujado abandonado em navio operacional e admirado, faz recordar-me algumas (diria mesmo, muitas)situações que vivi de perto umas e de que tive conhecimento outras, em nada parecidas com esta. De facto este comandante, a somar às suas qualidades técnicas, tinha o estofo de chefe e de exímio condutor de subordinados. Nada custa a acreditar que assim fosse ou assim tenha sido, a avaliar pelas suas próprias palavras ao referir-se à guarnição do navio... Note-se que raramente ou nada mesmo puxa os louros do(s) êxito(s) alcançado(s)para a sua cabeça, preferindo colocá-los na cabeça das pessoas que comandava. Uma equipa assim chefiada sente-se moralizada, trabalha com prazer e só pode alcançar um resultado: sucesso absoluto. Qualquer guarnição é tudo que o respectivo comando quiser ou souber cultivar.

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    1. Obrigado meu amigo.
      Um abraço,
      oc.

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    2. Obrigado pelas suas palavras que li com muito agrado.
      Um abraço,
      oc.

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